17 agosto 2011

Sentença prolatada contra juros abusivos de cartão de crétido


( Transcrição de sentença prolatada no interior da Bahia, que merece ser seguida nos milhares e milhares de demandas contra os juros abusivos aplicados pelos cartões de crédito - enviado pelo RENAP )

Revisão Juros Cartão de Crédito



Processo Número: 0447/07
Autor: ..........
Réu: IBI Card C&A Mastercard Nacional

Cartão de Crédito. Juros exorbitantes sobre o saldo financiado. Abusividade. Inaplicabilidade da Lei de Usura. Violação à principiologia consumerista. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Ilegalidade da “Cláusula Mandato.” Revisão. Possibilidade. Re-equilíbrio contratual.

Dispensado o Relatório. (Lei nº 9.099/95, art. 38).
Pretende o autor a o refaturamento das contas de cobrança de cartão de crédito pelo juro de 1% am e repetição do indébito dos valores pago a mais. Alega que não vem conseguindo liquidar sua dívida ante os altíssimos juros cobrados de 12,90% am. Liminarmente requereu a exclusão de seu nome de órgãos de restrição de crédito e inversão do ônus da prova para que o acionado apresentasse o “histórico da evolução do débito do autor.”
Juntou os documentos de fls. 04 a 14. Liminar concedida às fls. 16.
Não houve conciliação.
O acionado contestou a ação e alegou, preliminarmente, a incompetência do juizado em razão da complexidade e carência de ação por impossibilidade jurídica do pedido em razão da imperatividade dos termos do contrato e do “pacta sunt servanda.” No mérito, defendeu a legalidade das cláusulas do contrato de cartão de crédito, o ato jurídico perfeito, legalidade das taxas praticadas, a inexistência de capitalização, a impossibilidade de repetição do indébito, o cumprimento da inversão do ônus da prova e, por fim, a improcedência da ação.
Com relação às preliminares, entendo que os documentos apresentados pelo autor permitem o conhecimento e julgamento da ação por este juízo. Não é o caso, portanto, de incompetência em razão da complexidade.
A preliminar de impossibilidade jurídica do pedido diz respeito ao mérito da questão, ou seja, da possibilidade de revisão de cláusula de contrato de cartão de crédito.
Com relação à natureza jurídica do contrato, esclarece o acionado que é o titular do cartão quem decide pelo financiamento e a administradora está autorizada a obter, em seu nome, empréstimo junto às instituições financeiras, em decorrência da “cláusula mandato.”
No mérito, também não merece acolhida as alegações do acionado em relação à legalidade das taxas aplicadas e obediência ao “pacta sunt servanda”, conforme as razões a seguir expendidas.

I – O NOVO CONCEITO DE CONTRATO
Em excelente texto sobre a reconstrução do conceito de contrato, Roxana Cardoso Brasileiro Borges, professora adjunta de Direito Civil da UFBA e UNEB, professora da UCSal, Doutora em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP e Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela UFSC, fez síntese comparativa e extremamente objetiva sobre o conceito clássico de contrato e o conceito contemporâneo.[1]
No antigo conceito de contrato, enquanto acordo de vontade entre interesses opostos, em antagonismo, imperavam os princípios da intangibilidade e do “pacta sunt servanda” e o papel do Estado era simplesmente garantir seu cumprimento, pois que necessariamente justo.
Contemporaneamente, no entanto, no novo conceito, prevalece a noção de contrato como vínculo de cooperação e a percepção da necessidade de atuação cooperativa entre os pólos da relação contratual.
Pois bem, desse novo conceito algumas conseqüências jurídicas decorrem de imediato: a proteção da confiança no ambiente contratual, a exigência da boa-fé e a observância da função social do contrato.
Nesse novo conceito, o papel do estado será sempre no sentido de superar, também, a noção de igualdade formal pela igualdade substancial, permitindo aos juízes interferir no contrato e relativizar o “pacta sunt servanda,” aplicando os princípios consagrados na Constituição Federal e no Código Civil.
Completamente fora de moda, conseqüentemente, o discurso de que a intervenção judicial nos contratos é fator de insegurança jurídica e de um suposto “custo Brasil”, como alardeiam os porta-vozes do empresariado nacional e estrangeiro, pois sobre a suposta segurança jurídica deve prevalecer, sobretudo, a justiça contratual.
A revisão contratual, portanto, não tem o objetivo de ultrapassar a vontade das partes e gerar insegurança ao vínculo contratual, mas re-equilibrar o contrato com a finalidade de preservá-lo, com a possibilidade de satisfação dos interesses legítimos em jogo, buscando, por assim dizer, o cumprimento re-equilibrado.
Analisemos, portanto, o contrato objeto da presente lide.

II – O CONTRATO DE CARTÃO DE CRÉDITO
O contrato de prestação de serviço de administração de cartão de crédito é essencialmente de adesão, ou seja, o contratante recebe o cartão e procede ao respectivo desbloqueio, aderindo, neste exato momento, às cláusulas contratuais pré-estabelecidas pela administradora. Sem possibilidade o consumidor, evidentemente, de discutir os encargos, multas e taxas de juros em caso de mora, ficando tais valores ao sabor dos ventos ou da ganância da administradora, maior ou menor, pelo lucro fácil.
Na lição contemporânea de Eugênio Kruchewsky[2]:
“No contrato de adesão um dos contratantes elabora as cláusulas contratuais, determina o seu conteúdo sem a participação do outro, o aderente. Fácil perceber que o aderente não protagoniza a fase de criação do contrato, a ele resta apenas, aderir ou recusar o contrato como um todo, pronto e acabado.”
Quanto à interpretação dos referidos contratos, a lição clássica de Orlando Gomes[3] já preconizava: “Aplica-se a regra de hermenêutica, segundo a qual devem ser interpretadas a favor do contratante que se obrigou por adesão.”
No mesmo sentido, dispõe o artigo 47, do Código de Defesa do Consumidor: “As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.”
Sem dúvida, portanto, que estamos diante de um contrato de adesão, cuja interpretação deve ser operada de maneira mais favorável ao consumidor, utilizando-se dos princípios assentados no Novo Código Civil e Código de Defesa do Consumidor. Antes, releva destacar alguns aspectos da “cláusula mandato” e limitações às taxas de juros aplicadas.

III – A LEI DE USURA E A CLÁUSULA MANDATO
O STF já sumulou o entendimento de que as disposições do Dec. 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o sistema financeiro nacional. (cf. Súmula 596).
De sua vez, o STJ, seguindo o mesmo entendimento, sumulou o entendimento que as empresas administradoras de cartão de crédito são instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios por ela cobrados não sofrem as limitações da Lei de Usura. (cf. Súmula 283).
A cláusula mandato, como vem a indicar o próprio vocábulo, é mandato outorgado pelo titular do cartão à administradora para realizar negócios jurídicos em seu nome, tais como a contratação de empréstimo no mercado financeiro.
Não é mais pacífico, no entanto, a legalidade da cláusula mandato em contrato de cartão de crédito.
Ora, a Súmula 297 do próprio STJ estabelece que o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras. Assim, seguindo a lógica do STJ, administradora de cartão de crédito é instituição financeira e, por isso mesmo, sujeita-se às normas do Código de Defesa do Consumidor.
Além disso, a Súmula 60, do mesmo STJ, declara nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário vinculado ao mutuante, no exclusive interessa deste, mas entende legal a mesma hipótese para o contrato de cartão de crédito:
AGRAVO REGIMENTAL - AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO DE FINANCIAMENTO BANCÁRIO - CLÁUSULA-MANDATO - NULIDADE - INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO Nº 60 DA SÚMULA DO STJ - AGRAVO IMPROVIDO.
1. Salvo nos contratos relacionados a cartão de crédito, é nula a cláusula contratual que prevê a outorga de mandato para criação de título cambial.
2. Agravo regimental improvido.
AgRg no REsp 770506 / RS - AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2005/0125691-4 - Rel. Min. MASSAMI UYEDA – 4ª T - J.13/11/2007 - DJ 03.12.2007- p. 315.
Não é mais assim, porém, que têm entendido, por exemplo, os Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e de São Paulo:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. REVISIONAL DE CONTRATO. CONTA-CORRENTE. CARTÃO DE CRÉDITO. Juros remuneratórios de acordo com a Taxa SELIC. Capitalização dos juros possibilitada na forma anual e tão-somente em relação ao contrato de conta-corrente. Repetição de indébito admitida. Nulidade da cláusula mandato. Sucumbência invertida. DERAM PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70023527476, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ergio Roque Menine, Julgado em 16/04/2008)
No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo, recentemente, em Ação Civil Pública movida pelo Instituto de Defesa do Consumidor – IDEC, reconheceu a nulidade e ineficácia da cláusula mandato, por afronta ao disposto no artigo 51, VIII do Código de Defesa do Consumidor, por estabelecer prestações desproporcionais, exigindo do consumidor vantagem manifestamente excessiva e incompatível com a boa-fé e a eqüidade.
Ementa: AÇÃO CIVIL PUBLICA - IDEC é parte legítima ativa para, em nome próprio, defender os interesses dos seus associados - Inteligência dos artigos 1o, inciso IV e 5o, I e II, da Lei n° 7.347/85 e artigos 82, IV e 117 da Lei 8.078/90 - Usuários de cartões de crédito da Requerida - Nulidade da cláusula mandato por afronta ao disposto no art. 51, inciso VIII, do CDC - Por ser equiparada
AÇÃO CIVIL PUBLICA - IDEC é parte legítima ativa para, em nome próprio, defender os interesses dos seus associados - Inteligência dos artigos 1o, inciso IV e 5o, I e II, da Lei n° 7.347/85 e artigos 82, IV e 117 da Lei 8.078/90 - Usuários de cartões de crédito da Requerida - Nulidade da cláusula mandato por afronta ao disposto no art. 51, inciso VIII, do CDC - Por ser equiparada a instituição financeira, para as administradoras de cartões de crédito não se aplica o limite de juros de 12% ao ano - Vedada a capitalização de juros (anatocismo) - Ilegal e irregular a inscrição, de forma genérica, dos consumidores em débito com as Administradoras de cartões de crédito - Recurso parcialmente provido.
Rel. Paulo Hatanaka - Comarca: São Paulo - Órgão julgador: 19ª Câmara de Direito Privado - Data do julgamento: 04/03/2008 - Data de registro: 28/03/2008
Merece transcrição o artigo 51, VIII, do Código de Defesa do Consumidor:
“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
VIII – imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor.”
Por fim, também não pode a administradora alegar a captação de crédito no mercado financeira com taxas equivalentes, pois não fez prova nos autos de tais operações e, sem qualquer justificativa ou prestação de contas ao contratante, apenas indica a taxa de juros que lhe convém para “período futuro”.
Quanto pagou pelo crédito que captou no mercado financeiro? Qual sua margem de lucro?
São respostas absolutamente necessárias, entre contratantes, para o estabelecimento da boa-fé inerente aos contratos, conforme disposto no artigo 422, do Novo Código Civil:
“Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”
Do exposto, mesmo entendendo pela inaplicabilidade, no caso, da Lei de Usura, o contrato de cartão de crédito deve obedecer, quanto às taxas de juros, os limites da economia estabilizada e inflação sob controle, sendo razoável o limite de 12% AA, conforme veremos.

IV - OS JUROS
A Emenda Constitucional nº 40, de fato, revogou o § 3º, artigo 192, da Constituição Federal, que limitava a taxa de juros a 12% ao ano. Aliás, antes mesmo da revogação através de Emenda Constitucional, o STF já havia decidido pela necessidade de regulamentação do artigo. Dessa forma, pode se dizer que o dito § 3º “foi sem nunca ter sido.”
Pois bem, o Código de 1916 estabelecia que a taxa de juros moratórios seria de 6% ao ano quando não convencionada de outra forma pelos contratantes. (cf art. 1.062, do CC de 1916).
Já o novo Código Civil, em seu artigo 406, estabelece que tais juros serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.
A discussão pretoriana e doutrinária atual diverge em relação à aplicação da SELIC ou do Código Tributário Nacional, artigo 161, § 1º:
.
“Se a Lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de 1% (um por cento) ao mês.”
O Min. DOMINGOS FRANCIULLI NETTO, do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 215.881-PR, assim se posicionou:
“A Taxa Selic para ser aplicada tanto para fins tributários como para fins de direito privado, deveria ter sido criada por lei, entendendo-se como tal os critérios para a sua exteriorização. Atenta contra o comezinho princípio da segurança jurídica a realização de um negócio jurídico em que o devedor não fica sabendo na data da avença quanto vai pagar a título de juros, pois, não terá bola de cristal para saber o que se passará no mercado de capitais, em períodos subseqüentes ao da realização do negócio, se repisado o aspecto de que os juros são entidades aditivas ao principal e não mera cláusula de readaptação do valor da moeda”.
Arrematou seu voto o ilustre Ministro defendendo a aplicação do CTN:
“a mora referida na segunda parte do art. 406 do CC/2002 somente pode ser composta com os juros previstos no art. 161, §1º, do Código Tributário Nacional (Lei n. 5.172, de 25/10/66), isto é, 1% ao mês ou 12% ao ano”.
Na mesma linha, o Enunciado nº 20, aprovado na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, sob a coordenação científica do então Ministro Ruy Rosado, do STJ, nos seguintes termos:
20 - Art. 406: a taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, 1% (um por cento) ao mês.
Por fim, os juros legais e moratórios sobre obrigações inadimplidas depois da vigência do Código Civil de 2002, segundo entendimento deste juízo, é a de 1% ao mês, excluída a aplicação da taxa SELIC, mesmo que momentaneamente estipulada abaixo desse patamar.
Com relação aos juros convencionais, o limite tem sido regulado pelo dos juros legais, uma vez que o Dec. n. 22.626, de 7 de abril de 1933, ainda em vigor, estabelece:
"Art. 1º. É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal (Código Civil, art. n. 1.062)."
De outro lado, permitir taxas de juros no patamar do dobro da taxa legal, considerando a estabilidade da economia brasileira e as baixas taxas de inflação, estaríamos permitindo que o capital se transfira da esfera produtiva para a especulativa, tornando mais interessante auferir juros do capital do que investir e produzir, contrariando a função social do instituto de mútuo bancário, bem como indo de encontro aos objetivos constitucionais de "garantir o desenvolvimento nacional" (art. 3°, II, CF) e "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (art. 3°, III, CF).
Esta prática tem permitido, por fim, que os bancos apresentem lucros cada vez maiores, disputando recordes de lucratividade e subvertendo a lógica de uma economia que urge desenvolver-se e permitir que a República alcance seu objetivo: “construir uma sociedade livre, justa e solidária,” conforme previsto no artigo 3º, I, da Constituição Federal.
Depreende-se, portanto, que os juros convencionais não podem superar, no caso de uma economia estabilizada e baixos índices de inflação, sob pena de onerosidade excessiva e desequilíbrio contratual, também o patamar de 12% ao ano, sob pena de abusividade por parte do agente financeiro.

V - PRINCIPIOLOGIA CONSUMERISTA E CONTRATUAL
Segundo o Professor Ricardo Maurício Freire Soares, que defende uma nova interpretação do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, são basilares para o direito do consumidor, dentre outros, os seguintes princípios: transparência (CDC, art. 4º, caput); vulnerabilidade (CDC, art. 4º, I); igualdade (CF, art. 5º, caput); boa-fé objetiva (CDC, art. 4º, III, parte final); repressão eficiente a abusos (CDC, art. 4º, VI); harmonia do mercado de consumo (CDC, art. 4º, caput e III); eqüidade contratual (CDC, art. 47) e confiança.[4]
Para deslinde de nossa causa, abordaremos a seguir alguns desses princípios, além de outros que o caso exige.

a) A abusuvidade
Em defesa do equilíbrio contratual, o Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90, declara nulas de pleno direito as cláusulas contratuais, entre outras, que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloque o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.”
Depreende-se das faturas apresentadas pelo autor (fls. 05 a 14), a cobrança de juros e 12,90 % am para “financiamento no próximo período”, ou seja, 154,8% aa!
É certo que a jurisprudência dominante no STJ aponta para a inaplicabilidade da Lei de Usura para as instituições financeiras do tipo administradoras de cartão de crédito, mas, convenhamos, para uma economia estabilizada e inflação sob controle, 154,8% de juros ao ano representa onerosidade excessiva ao consumidor e enriquecimento sem causa à administradora do cartão de crédito, violando a norma, sem dispositivo correspondente no Código Civil de 1916, do artigo 884, do Novo Código Civil:
“Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.”
Com efeito, o Banco Central do Brasil, há vários meses mantém a taxa selic abaixo de 12% aa, sendo fixada na última reunião do COPOM - Comitê de Política Monetária, em abril/08, em 11,75% aa. Não se justifica, definitivamente, a estipulação de taxa de juros em 154,8% aa!!

b) Vulnerabilidade do Consumidor
O artigo 4º, I, do Código de Defesa do Consumidor, que trata da Política Nacional de Relações de Consumo, reconhece, expressamente, a condição de vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. Segundo a doutrina[5], esta vulnerabilidade pode ser classificada da seguinte forma:

- Técnica – quando o consumidor não possui conhecimentos específicos sobre o objeto que está adquirindo ou sobre o serviço que lhe está sendo prestado;
- Científica – a falta de conhecimentos jurídicos específicos, contabilidade ou economia;
- Fática ou sócio-econômica – quando o prestador do bem ou serviço impõe sua superioridade a todos que com ele contrata, fazendo valer sua posição de monopólio fático ou jurídico, por seu grande poder econômico ou em razão da essencialidade do serviço.
Além disso, sabe-se que atualmente a maioria dos contratos de consumo é de “adesão”, onde o banco ou financeira já possui um contrato padrão previamente elaborado, cabendo ao consumidor apenas aceitá-lo em bloco sem discussão, seja em face da sua vulnerabilidade técnica, seja em face da falta de alternativa.
Por fim, o princípio da vulnerabilidade do consumidor não pode ser visto como mera intenção, ou norma programática sem eficácia. Ao contrário, “revela-se como princípio justificador da própria existência de uma lei protetiva destinada a efetivar, também no plano infraconstitucional, os princípios e valores constitucionais, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da isonomia substancial (art. 5º, caput) e da defesa do consumidor (art. 5º, XXXII).” [6]

c) Onerosidade Excessiva
O Código de Defesa do Consumidor, ao definir os direitos básicos do consumidor, artigo 6º, V, permite a modificação de cláusula contratual que estabelece prestação desproporcional ou sua revisão em razão de fato superveniente que a torne excessivamente onerosa.
A interpretação da norma não remete para o antigo conceito da teoria da imprevisão no sentido da exigência da previsibilidade inequívoca do acontecimento, ou seja, basta agora a ocorrência, mesmo na origem, da lesão ou onerosidade excessiva.
“O Código de Defesa do Consumidor assumiu uma postura mais objetiva no que diz respeito à revisão contratual por circunstâncias supervenientes. Basta uma breve análise do artigo que postula tal possibilidade, para perceber que este não menciona qualquer requisito além da excessiva onerosidade presente: não se fala em previsibilidade ou imprevisibilidade, não há questionamentos acerca das intenções subjetivas das partes no momento da contratação.”[7]
Vê-se, portanto, que a onerosidade excessiva pode ser originária, ou seja, desde a formação do contrato, pois a condição de vulnerabilidade do consumidor não lhe permite a compreensão da vantagem manifestamente excessiva em favor do fornecedor do crédito.
Este princípio tem por fundamento, principalmente, a igualdade substancial nas relações contratuais e, por conseqüência, o equilíbrio entre as posições econômicas dos contratantes. Ao contrário do equilíbrio meramente formal, busca-se agora que as prestações em favor de um contratante não lhe acarretem um lucro exagerado em detrimento do empobrecimento do outro contratante.
Assim, “em face da disparidade do poder negocial entre os contratantes, a disciplina contratual procura criar mecanismos de proteção da parte mais fraca, como é o caso do balanceamento das prestações.”[8]

d) Função Social do Contrato
A nova compreensão do Direito Privado sobrepõe a perspectiva funcional dos institutos jurídicos à análise meramente conceitual e estrutural. Não se indaga mais, simplesmente, à cerca dos elementos estruturais com compõem o conceito do contrato, por exemplo, mas se a sua finalidade está sendo cumprida, pois “na perspectiva funcional, os institutos jurídicos são sempre analisados como instrumentos para a consecução de finalidades consideradas úteis e justas.”[9]
As transformações sofridas pelo Direito Privado em face da aplicação dos princípios constitucionais, de caráter normativo[10], bem como dos princípios estabelecidos no Novo Código Civil, principalmente a “função social do contrato” prevista no artigo 421, do CC, permitem ao Judiciário a intervenção no contrato para restabelecimento do seu equilíbrio.
O antigo princípio do “pacta sunt servanda”, portanto, precisa sofrer as adaptações da principiologia axiológica da CF de 1988 e do CC de 2002, ou seja, os contratos devem visar uma função social e a satisfação dos interesses das partes contratantes, em cooperação.
Assim, quando o contrato satisfaz apenas um lado, prejudicando o outro, o pacto não cumpre sua função social, devendo o Judiciário promover o re-equilíbrio contratual através da revisão das cláusulas prejudiciais a uma das partes.
Na teoria contemporânea do Direito das Obrigações, impõe-se uma mudança radical na leitura da disciplina das obrigações, que não pode mais ser considerada apenas como garantia do credor:
[...] a obrigação não se identifica no direito ou nos direitos do credor; ela configura-se cada vez mais como uma relação de cooperação [...] A cooperação, e um determinado modo de ser, substitui a subordinação e o credor se torna titular de obrigações genéricas ou específicas de cooperação ao adimplemento do devedor. [...] [11]
Mais que isso, o contrato não pode mais ser concebido como uma relação jurídica isolada da comunidade social e que só interessa às partes contratantes, como se impermeável às condições sociais que o cerca e que lhe afetam.
Segundo o professor Flávio Tartuce[12], “o Código Civil Brasileiro de 2002 é o único dispositivo que condiciona a liberdade contratual (ou a liberdade de contratar) à função social do contato.” Daí, o grande desafio de preencher o conteúdo do que seja a função social dos pactos.
Contribuindo de forma excepcional, o professor Tartuce nos ensina:
“Dessa forma e sem prejuízo de novos entendimentos doutrinários sobre o tema, a importância da inovação esse princípio é grandiosa, uma vez que já trouxe ao nosso sistema civil a idéia de abrandamento da força obrigatória dos contratos, afastando cláusulas que colidem com os preceitos de ordem pública e buscando a igualdade substancial entre os negociantes. O seu principal enfoque é justamente equilibrar as relações jurídicas, sem preponderância de uma parte sobre a outra, resguardados os interesses do grupo social também nas relações de direito privado.” (op. cit. p. 261).
Há quem defenda, não se pode negar, a eficácia apenas interna da função social dos contratos, restringindo sua aplicação apenas aos contratantes ou à investigação da causa do próprio contato. De outro lado, a exemplo de Flávio Tartuce, a idéia de função social está relacionada com o conceito de finalidade e não se pode afastar o seu fundamento constitucional, principalmente em relação à dignidade da pessoa humana. (op. cit. pp. 249 e 250).

e) A boa-fé objetiva
A boa-fé, entendida como elemento meramente subjetivo, situação ou fato psicológico, deu lugar ao princípio da boa-fé objetiva.
Agora, “o princípio da boa-fé impõe um padrão de conduta a ambos os contratantes, no sentido da recíproca cooperação, com consideração dos interesses um do outro, em vista de se alcançar o efeito prático que justifica a existência jurídica do contrato celebrado.”[13]
Neste sentido, o artigo 51, IV, do CDC, considera nulas as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que sejam incompatíveis com a boa-fé.
Ainda em termos de legislação, o artigo 422, do Código Civil Brasileiro, estabelece que os contraentes são obrigados a guardar os princípios da probidade e da boa-fé.
Em conseqüência, distanciando-se da subjetividade do antigo conceito, a boa-fé objetiva exige um dever de conduta, de ética, lealdade e de colaboração na execução do contrato.
Não se pode dizer, portanto, que está presente a boa-fé objetiva em um contrato que permite vantagens e lucros exorbitantes a um dos contratantes, resultantes de estipulação de taxas de juros em muito superiores ao razoável de uma economia estabilizada e com baixos índices de inflação.
Por fim, o Juiz não pode se esquivar do seu papel de criação do Direito, pois “a boa fé opera uma delegação ao juiz para, à luz das circunstâncias concretas que qualificam a relação intersubjetiva sub judice, verificar a correspondência do regulamento contratual, expressão da autonomia privada, aos princípios aos quais esta última deve ser funcionalizada. Tal delegação, prevista legislativamente, faz com que determinadas concepções acerca do papel do juiz ainda hoje sustentadas se tornem anacronismos com um sentido claramente retrógrado.”[14]

VI – JURISPRUDÊNCIA ATUAL PARA O CASO
Sempre vanguardista, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em acórdão unânime da 16ª Câmara Cível, há poucos dias, adotando a taxa Selic como base para os juros remuneratórios, assim decidiu:
APELAÇÃO CÍVEL. REVISIONAL DE CONTRATO. CONTA-CORRENTE. EMPRÉSTIMO. CARTÃO DE CRÉDITO. Juros remuneratórios de acordo com a Taxa SELIC. Capitalização dos juros possibilitada na forma anual e tão-somente em relação ao contrato de conta-corrente. Incabível cobrança de comissão de permanência. Impossibilidade da cobrança de multa compensatória. Multa moratória estabelecida em 2% sobre o débito. Compensação e repetição de indébito admitidas. Cláusula-mandato repelida. Correção monetária pelo IGP-M. Sucumbência invertida. DERAM PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70023714777, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ergio Roque Menine, Julgado em 14/05/2008)
Em brilhante e elucidativo acórdão, o eminente Relator discorreu:
É questão pacífica nesta 16ª Câmara Cível, a interpretação de que cláusulas contratuais que prevejam a fixação e a cobrança de juros exorbitantes são nulas de pleno direito, pois a estipulação do preço do dinheiro de consumo, esfera em que a abusividade negocial e a onerosidade expressiva dos encargos financeiros unilateralmente pactuados caracterizam conduta de má-fé, promovendo o enriquecimento ilícito do credor e o simultâneo empobrecimento sem causa do devedor.
No caso concreto, os juros remuneratórios devem ser reduzidos, com fundamento no Código de Defesa do Consumidor.
[...]
Dessa forma, a teor do artigo 51, parágrafo 1º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor, e observada a relação de consumo, são nulas as obrigações abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada frente ao fornecedor, respeitada a natureza do contrato.
Importa ressaltar que o índice dos juros remuneratórios contratado não pode extrapolar a taxa utilizada para o pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.
Assim, deverá incidir a taxa SELIC, que engloba juros e atualização monetária, além do que é a taxa média de mercado criada pelo Banco Central, mensalmente, para remunerar os títulos públicos e utilizada para pagamento de imposto de renda devidos à Fazenda Nacional.
Com efeito, a referida taxa é adotada por remunerar e atualizar monetariamente o capital objeto de mútuo e não trazer qualquer prejuízo às partes contratantes, defendido o equilíbrio contratual.
[...]
É sabido que deferida a revisão do contrato e determinados novos valores devidos, é possível a repetição simples do indébito após a devida compensação, nos termos do artigo 369 do Novo Código Civil, sob pena de excessiva onerosidade, tornando a revisão inócua ao devedor, principal prejudicado.
No que se diz respeito à correção monetária, na ausência de previsão contratual, o índice a ser aplicado é o IGP-M, que representa a inflação transcorrida e não traz prejuízo a qualquer das partes.

VII – CONCLUSÃO
Mesmo em face da inaplicabilidade da Lei de Usura para o caso, entendemos que a cobrança perpetrada pelo acionado, fere o disposto no artigo 51, IV e VIII, do CDC, bem como a principiologia consumerista supra mencionada e nos princípios do Novo Código Civil, merecendo ser revista para re-equilibrar a relação contratual.
Além disso, entendemos como injustificável a alegação de captação de crédito com taxas equivalentes, face ao questionamento da cláusula mandato e falta de comprovação, pelo acionado, dos respectivos contratos.
Do exposto, por tudo o mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE a Ação para determinar a revisão das taxas de juros aplicadas pelo acionado e, por conseqüência, o refaturamento das cobranças questionadas pelo autor com aplicação das taxas de juros de 1% am para os valores denominados “crédito rotativo”, incluindo-se apenas a multa de 2% por motivo de atraso no pagamento.
Deixo de apreciar o pedido de repetição do indébito, vez que o autor fez prova apenas da cobrança, mas deixou de fazê-lo em relação aos valores efetivamente pagos indevidamente.
Sem custas e sem honorários.
Publique-se. Registre-se. Intime-se.
Conceição do Coité, 26 de maio de 2008
Bel. Gerivaldo Alves Neiva
Juiz de Direito


[1] BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Reconstrução do conceito de contrato: do clássico ao atual. in Direito Contratual. Temas Atuais. coord. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio. São Paulo: Método, 2007. pp. 19-40.
[2] KRUCHEWSKY, Eugênio. Teoria Geral dos Contratos Civis. Salvador: Juspodium, 2006. p. 61.
[3] GOMES, Orlando. Contratos. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990. p. 139.
[4] SOARES, Ricardo Maurício Freire. A nova interpretação do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2007. pp. 89 a 101.
[5]BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A Revisão Contratual por excessiva onerosidade superveniente à contratação positivada no Código de Defesa do Consumidor. in Princípios de Direito Civil-Constitucional. Coord. TEPEDINO, Gustavo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 289.
[6] CALIXTO, Marcelo Junqueira. O Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor. in Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Coord. MORAES, Maria Celina Bodin de. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 355.
[7] BARLETTA, Fabiana Rodrigues. op. cit., p. 299.
[8] NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.159.
[9] RENTERÍA, Pablo. Considerações à cerca do atual debate sobre o princípio da função social do contato. in Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Coord. MORAES, Maria Celina Bodin de. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 294.
[10]“A Constituição é toda ela norma jurídica, seja qual for a classificação que se pretenda adotar, hierarquicamente superior a todas as demais leis da República, e, portanto, deve condicionar, permear, vincular diretamente todas as relações jurídicas, públicas e privadas.” TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 205.
[11] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 212.
[12] TARTUCE, Flávio. Função Social dos Contatos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. São Paulo: Método, 2007. p. 244.
[13] NEGREIROS, Teresa. Op. cit., p. 123.
[14] NEGREIROS, Teresa. Op. cit., p. 265.

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