Memória nº 91
Missa solene de despedida.
Chegara ao Brasil em Março de
1964, em pleno golpe militar, sendo em poucos dias designado para trabalhar em
Iguape, no Vale do Ribeira. De lá em pouco tempo foi mandado para a Paróquia de
São João Baptista de Cananéia que se encontrava há alguns anos sem pároco.
Assumiu e aos poucos foi ganhando a confiança da comunidade. Com o tempo foi galgando espaços e tomando conta de todo o território da Paróquia. Regularmente se dirigia ao interior, nas ilhas e comunidades isoladas e distantes para ouvir os reclamos daqueles que habitavam esses grotões.
Assim, foi unindo a
comunidade cristã e trazendo o povo para a Igreja Matriz e para as capelas
espalhadas por toda a Paróquia. Capelas que criava, erguia ou reformava.
Sua fala não poupava ninguém.
Fosse quem fosse João 30, o padre holandês que viera para o município mais
velho do país, não tinha retoques e sua retórica era firme, objetiva e
verdadeira. Defendia sem papas na língua, os pobres, caiçaras, negros,
descendentes de quilombolas, indígenas, homens, mulheres e todos que eram
injustiçados.
Mesmo com dificuldade para
melhor expressar-se no português se fazia entender e bradava em favor de mais
igualdade e menos injustiça.
Sempre altivo ensinava a
todos se organizarem e enfrentarem as dificuldades solidários entre si. Deu ao
povo carente da sociedade local a honorabilidade e dignidade de serem pessoas
como quaisquer outras, através de exemplos e incentivos. Ensinou a respeito de
direitos naturais, humanos e meio ambiente. Transmitiu noções de cidadania ao
povo até então perdido e sem rumo da periferia da cidade e do mundo rural das
ilhas que se espalham pelo Lagamar.
Não tinha descanso. Ora em
Registro, na Diocese, em assuntos administrativos. Ora em Iporanga substituindo
às férias do pároco e dia e noite viajando pelas ilhas e praias perdidas do
Lagamar. Sua casa, no centro da cidade, era abarrotada de livros, folhetos e papéis
que eram lidos sem trégua. Talvez para tanta energia o pároco de São João
Baptista trabalhasse vinte e cinco horas diárias.
Dada as suas constantes
andanças havia um código: Janela da sala, frontal à calçada da rua Tristão
Lobo, aberta, era aviso que se encontrava à disposição de quem precisasse
conversar com ele. E não faltava gente para visitá-lo. Iam denunciar abusos,
pedir ajuda, falar de Deus, combinar missas... iam apenas visita-lo, como
diversas vezes Lourenço indo à Cananéia fez.
Regularmente, em suas férias,
atravessava o Atlântico para visitar a família e trazer algo que a Diocese de
Registro precisava. Algo para o povo pobre do lugar. Ora era um motor de barco,
ora um jeep, ora isso, ora aquilo...Trazia para a Paróquia de Cananéia e para
outras paróquias carentes e para a Diocese, também bem pobre.
( Capela da Enseada da Baleia )
Sempre bem disposto, não se
cansava. Viajava pelas trilhas, pelos canais, pelos manguezais e com a firmeza
de sua personalidade ia ao encontro de quem precisasse. Sempre estimulando uma
vida digna, melhor e mais justa.
Não foram poucas as situações
que gente desqualificada o atacou, ou com palavras mentirosas e injuriosas ou
até fisicamente, mas sempre se deram mal. Também não foram poucas as vezes que
assumiu pessoalmente a defesa de humildes lavradores, contra atos de agressão
promovidos por grileiros ou invasores que pressionavam para que os imóveis
fossem abandonados. Defendia os pescadores alertando que os atravessadores
ganhavam muito mais que eles que iam pescar e arriscar a vida em mar grosso,
bravo, no frio, nas madrugadas, sob chuva, sob sol forte e lutava contra a
opressão dos fortes sobre a ignorância e submissão do povo humilde da cidade.
Era o grande defensor do meio
ambiente, dos direitos humanos e sem receio, enfrentava todas as adversidades
em coerência com seu ideal de vida.
Entre as inúmeras obras que ergueu, Lourenço lembra que foi orientar aos descendentes de quilombolas, então envergonhados da origem, a terem orgulho de serem os netos e bisnetos de escravos.
Com esse núcleo de negros da região do rio Mandira, um bairro esquecido no pé da serra, muitos desses habitantes eram catadores de ostras do manguezal. E com paciência e dedicação o padre os organizou e orientou para que instituíssem uma cooperativa, de forma a melhorar a condição de produção e assim, melhorar a qualidade de vida de toda a comunidade.
Nas diversas povoações espalhadas pela Ilha do Cardoso orientou a todos para que cuidassem do meio ambiente de forma a transformar a beleza no patrimônio a ser explorado pelo turismo consciente.
E nessa linha, ao longo dos anos se dedicou ensinando um, orientando outro e sempre com o evangelho na mão, levada a palavra de Jesus a par de ir mostrando a justiça social e o direito de ser feliz.
Lourenço o conheceu logo que
mudou-se para a cidade em 1982.
Sua aproximação maior se deu
quando exerceu a vereança e se expos em favor dos mais humildes, dos pobres,
dos que não tinham voz nem prestigio. E a
amizade durou a vida inteira.
Pe. João 30 indicou Lourenço
que passou a prestar serviços à Diocese de Registro. Teve oportunidade de
defender a Igreja e os caiçaras humildes do Vale do Ribeira por longos anos.
Aproximou-se e se tornou amigo de Don Apparecido José Dias o bispo diocesano e
participou com o clero de inúmeros empreendimentos em defesa do justo. Aprendeu
muito. Aproximou-se de uma realidade desconhecida até então. Entendeu a
Teologia da Libertação e o sofrimento dos caiçaras perdidos nas sombras
esverdeadas da Mata Atlântica.
Mas um dia o Bispo zarpou
para Roraima...Lourenço para o Tocantins... e depois, um dia o Bispo, adoentado
faleceu.
A Diocese de Registro teve
sua liderança substituída. O primeiro bispo, nomeado por S.S. o Papa Paulo VI,
seguia a doutrina exposta pela teologia da libertação e o sucessor, nomeado
pelo Santo João Paulo II não, mudando os rumos da Igreja no Vale do Ribeira.
Mas mesmo assim, João 30 não
desistiu e continuou levando sua fé e a mensagem de Cristo para os mais
humildes. Um dia, no entanto foi abatido pela doença. A fortaleza física e
mental foi derrubada e pouco a pouco o colocando numa situação fragilizada.
Numa ocasião a Câmara
Municipal da Estância Balneária de Cananéia lhe outorgou o título de Cidadão
Cananeense. Título meritoso por tudo que realizou durante sua vida, pela cidade,
pelo povo e por todo o Vale do Ribeira.
Mas a doença foi mas forte e
o derrubou.
(...)
Adoeceu e foi convidado a
sair da casa na qual morara desde que chegara em Cananéia. Indignação geral.
Seus amigos não entenderam a atitude do Bispo Diocesano que ao invés de o
acolher, para que passasse o final de seus dias agasalhado junto àqueles que
sempre servira, foi despejado de sua pequena casa.
Lourenço foi convidado a
participar da Missa Solene que seria celebrada em sua homenagem. Cida, a
secretaria da Paróquia pediu que fizesse um discurso sobre o velho padre. Junto
com o companheiro Jacy, também já na eternidade, elaboraram um texto para ler durante
a celebração. (O texto se encontra publicado no
blog.)*
No sábado agendado para a
santa celebração de despedida solene do vigário holandês, a celebração se
iniciou por volta das 18,30 horas. A pequena Igreja de São João Baptista se
tornou menor, com fieis e amigos do padre vindos de todos os cantos do Vale do
Ribeira, do litoral, do Estado e até de longe, como Lourenço, que acompanhado
de Lourença esposa viera de São Francisco do Sul.
A celebração foi presidida pelo Reverendíssimo Bispo Diocesano e durante o ato,
foram exibidas filmagens de capelas, de sítios e de fatos registrados que
mostravam a atuação do padre. Fieis eram convidados e subiam ao púlpito para
exporem notícias de suas convivências com João 30.
O Bispo se retirou antes do
final da celebração. Por volta das 21 horas saiu sem se despedir. A missa
terminou por volta de meia noite passada... Já no domingo. E após, no clube
Maratayama, uma festa estava preparada para todos.
Gente humilde vinda da zona
rural, pobres caiçaras da periferia e gente importante. Durante a missa
estiveram presentes autoridades de grande influencia de todos os poderes da
República, que foram prestigiar a festa do padre. Gente pobre e gente rica.
Pessoas anônimas e elegantes personalidades. Todos se manifestando publicamente
sobre a vida missionária do padre, que sentado no altar, ouvia e acenava com a
cabeça aquiescendo com as histórias lembradas.
Por sorte João 30, despejado
da casa paroquial, não precisou morar debaixo da ponte. Até porque em Cananéia
só há ponte sobre rios e não teria abrigo. Foi morar de favor na casa de uma
amiga que ergueu uma construção no bairro de pescadores, especialmente para que
o padre pudesse passar o resto de sua vida junto com quem mais ajudara: O povo
humilde de Cananéia.
Mas o tempo passava e a
doença aumentava. Gravemente adoentado, por diversas vezes teve que ir se
internar ora em Pariquera-Açu, no Hospital Regional, ora em São Paulo.
O homem forte, lúcido e
consciente das necessidades dos caiçaras, agora babava e só se movimentava
sobre cadeiras de roda. Mas não se deixava abater. Firme lutava contra a doença
e contra as injustiças tão comuns e aculturadas no país.
Até que um dia não teve mais
como aguentar e sucumbiu. Foi ao encontro do Criador e, aos que creem, sabem
que deve estar bem próximo gozando das benesses da eternidade santificada.
Cananéia e o povo cristão do
Vale do Ribeira perderam o grande amigo. Lourenço perdeu igualmente um grande
amigo que lhe ensinou muito durante a vida.
Lourenço revela que conheceu
o outro lado da vida do brasileiro em Cananéia e através de João 30 passou a
entender melhor a injustiça social que o povo brasileiro é submetido. Conheceu
a verdadeira palavra de Jesus e a Teologia da Salvação.
Enfim, é mais uma recordação
das tantas que tem registrado, porém de dor, saudades, vazio e tristeza.
Roberto J. Pugliese
Foi vereador em Cananéia em
1983.
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