Antonio Paixão desiludido viaja para Portugal.
O Expresso Vida traz outro texto do já famoso escriba.
Boa leitura !
"O FIM DO RETIRO E O OCEANO DE TRISTEZA.
Imerso
estava em minha barrica de vinho de São Roque, cumprindo meu retiro
obsequioso para prevenção e terapia contra a Covid-19, quando recebi a
visita de meu editor. Seu propósito era o de comunicar o fim de sua
paciência comigo e também aquele de minha estação de imersão no bálsamo
vinícola. Eu era convocado a partir para Lisboa de maneira a recepcionar
o prêmio IG-Nóbil, que me fora meritoriamente agraciado. Disse-me o
editor que meus livros andavam encalhados e que precisavam de promoção,
além de um santo forte. A passagem estava comprada. A reserva de meu
hotel feita e os enfermeiros do laboratório estavam à porta para o exame
da Covid-19. Na melhor maneira dos miseráveis, obedeci. Tomei uma ducha
de água morna e vesti os meus velhos trapos, que encontrei finalmente
lavados e passados. Que luxo!
Deparei-me
com um mundo exterior desolador. O céu estava plúmbeo. Fazia muito frio
em São Paulo naquele 22 de agosto de 2020. A temperatura era de 7 graus
centígrados. Chovia a cântaros. As favelas erguidas no entorno do Pico
do Jaraguá davam um matiz dantesco àquele fim de tarde angustiante. Os
parcos resquícios da Mata Atlântica nas escarpas da montanha
apresentavam-se com falhas de onde havia sido retirada a madeira nobre
para o comércio e aquela mais simples, para as fogueiras de inverno,
acesas pelos cidadãos sem-teto que ergueram suas precárias barracas aqui
e acolá. Perguntei-me triste e silenciosamente quantos desafortunados
morreriam de frio naquela noite.
Ao
adentrar na zona central de São Paulo, o Rio Tietê acomodava
quantidades inimagináveis de lixo, levados pelas galerias de águas
pluviais. As ruas encontravam-se apinhadas de miseráveis a pedir esmolas
ou a vender comestíveis e água mineral. Famílias ensopadas pela
inclemente chuva de inverno buscavam abrigo em improvisadas barracas de
cobertura plástica sob as árvores, na expectativa de evitar a morte de
frio. Cães abandonados famintos corriam alucinados pelas ruas, avenidas e
alamedas. Pelos ares ecoava apenas a lembrança do gorjeio das maritacas
que abandonaram os céus inamistosos da metrópole. Um ou outro automóvel
de luxo procurava, em vão, escapar da indigência e promover a fuga da
consciência dos condutores, em alta velocidade.
O
Brasil contabilizada naquele dia 120 mil mortes pela Covid-19 e mais de
20 milhões de contaminados pelo vírus, segundo estimativas, devido à
deliberada ausência de testes generalizados e às estatísticas não
confiáveis, da parte do governo federal. Nosso povo, que em grande parte
habita as favelas, cortiços e relentos vários, sem água e esgoto,
contava com o número de 18 milhões de desempregados, 20 milhões de
subempregados e outro tanto de desocupados. A Nação sobrevivia de um
pagamento emergencial mensal de R$ 600,00, menos de 100,00 Euros, criado
pela oposição parlamentar, na inação do governo federal.
Secaram
os investimentos públicos na educação. Até mesmo as merendas escolares
minguaram ou deixaram de ser disponibilizadas. Para os alunos da rede
pública, o ensino à distância nada representava. O fosso entre as
crianças ricas e aquelas pobres aumentava hora a hora. Essas, de sua
perpétua esqualidez, aguardavam a contaminação pelo vírus da Covid-19, a
morte por uma bala perdida ou ainda pelas mãos de uma polícia infestada
pelas milícias do crime e pautada pela misantropia, pela maldade e pela
desumanidade. Aquelas crianças ou adolescentes de cor negra ou parda
tinham muito maior probabilidade de se tornarem vítimas desta crueldade.
O
cenário desolador agredia a consciência daqueles que não perderam a
capacidade de indignação. Por sua vez, os insensíveis procuravam se
esconder da realidade nos mais recônditos espaços de sua quase exaurida
dignidade. A constatação de que o Brasil encontra-se chafurdando no
esgoto restava inescapável. O Aeroporto Internacional de Guarulhos
estava vazio. As lojas luxuosas, fechadas, exibiam ainda em suas
vitrines os produtos supérfluos e disparatados a ofender o senso de
decência que ainda sobra aos brasileiros, nestes momentos de agruras
nacionais.
O
avião de bandeira estrangeira estava com apenas um terço da capacidade.
Os passageiros eram quase todos brasileiros e haviam perdido a
capacidade de sorrir, apresentando-se cabisbaixos. Eles eram olhados
com desconfiança e desprezo pela tripulação. Afinal, são os brasileiros
culpados ou não pela eleição deste governo desditoso que agride a
consciência humanística internacional? Um casal envergonhado procurava
se comunicar num inglês sofrível, a tentar dissimular a origem nacional.
Na
rota do voo, muitos incêndios podiam ser observados. Visto de cima, o
Brasil ardia. Ora era a Mata Atlântica, ora o cerrado, ora a caatinga,
mas o coração sabia que o País queimava também na Canastra, no Pantanal e
na Amazônia, pois o cheiro acre do fumo permeava a alma e o crepitar
dos fogos enlouquecia a gente. Junto com a flora, sempre desaparece a
fauna. Pássaros e animais desorientados hoje buscam abrigo em pequenos
capões de mato.
Os
tucanos deixaram de voar em duplas e agora retiram-se em bandos de mais
de 10 indivíduos, como se a implorar por proteção. Os atormentados
tamanduás tornaram-se torturadas tochas ambulantes. Os nobres tatús não
têm mais onde cavar e os lindos tiús onde se abrigar. Ambos são
procurados para os assados dos mineradores, os quais cavaram grandes
áreas e deixaram sua peçonha de metais pesados pelos rios e lagos,
causando grande mortandade de peixes. A poluição do Rio Doce chegou até
as águas azuis dos Abrolhos, turbando os resquícios e sepulturas da nau
capitânia holandesa Utrecht, que jaziam pacificamente desde o século 17.
No
lugar de nossa tradicional vegetação nativa, legado da Natureza e da
preservação feita por gerações de brasileiros responsáveis, estão pastos
e plantações onde agrotóxicos completam a devastação e matam até mesmo
bilhões de abelhas. As populações nativas, assediadas de todos os lados,
padecem ainda da sanha dos sorrateiros, sinistros e sórdidos, mas
sorridentes missionários evangélicos que portam, dentre outros, o vírus
do Mal. Vítimas do cruel genocídio, morrem os nossos nativos da mesma
maneira que a abelha Jataí, nas mãos dos seus diversos algozes
protegidos pelas instituições de Estado.
Ao aterrar insone em Lisboa, dei-me conta que só nos resta apelar à misericórdia Divina. Que horror!!! "
Roberto J. Pugliese
Editor
Membro da Academia Itanhaense de Letras.
Membro da Academia Eldoradense de Letras.
Titular da cadeira 35 da Academia São José
de Letras.
( indignado com a administração federal do
país )
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