O Expresso Vida apresenta texto do ilustrado advogado Sérgio Sérvulo da Cunha, brilhante causídico que representou a OAB no impedimento do então presidente Collor de Melo e já foi vice prefeito de Santos.
Boa leitura:
" Guerra e paz
Jânio Quadros era
bizarro. Hoje é fácil ver isso, olhando na foto seu paletó com caspa, seus pés
trocados, recordando sua retórica autoritária. Na época, não. Só tínhamos olhos
para a sua vassourinha (“varre, varre, vassourinha; varre, varre a roubalheira;
que o povo já está cansado; de sofrer dessa maneira”).
Eu era jovem, e votei
nele. Mesmo não sendo testada a alternativa (o marechal Lott), posso dizer que
errei feio. Com sua megalomania, Jânio abriu as portas para o golpe de 1964.
Collor também era
bizarro. Mas, antes da eleição, era impossível convencer, eleitor seu, a não
cometer esse erro. Eles estavam hipnotizados pelo “caçador de marajás”, um
homem de rompantes, que iria acabar com a inflação “com um tiro”. Um homem que
“prendia e arrebentava”, dizia “duela a quem duela”, e iria mudar tudo. Acabou,
sim, foi com as nossas poupanças (vi gente morrer, por causa disso). Collor não
tinha ideias, mas, ao menos, comparecendo aos debates, permitia que
avaliássemos seu despreparo.
Foram dois ingleses,
que viveram no mesmo século, os inventores da soberania popular: Thomas Hobbes
e John Locke. Talvez tenha sido, esse, o século mais agitado na vida da
Inglaterra (o século XVII), quando foi morto e decapitado um rei (o rei Charles
I), instaurou-se uma república tirânica com Oliver Cromwell, restaurou-se a
monarquia, mas, alguns anos depois, o rei (Jaime II) foi deposto pela
“revolução gloriosa”.
As pessoas estavam em
pânico. Havia tradicionalmente, na política inglesa, dois partidos: o do rei
(tories) e o do Parlamento (whigs). Hobbes era tory, e defendia a origem divina
das prerrogativas reais.Dizia, por isso, que ao instituir a sociedade política
e escolher o monarca, o povo renunciava a todos os seus direitos. Em outras
palavras: Hobbes era absolutista. Para ele, não havia direito de oposição, e os
divergentes podiam ser eliminados.
Locke, que era whig, é
considerado o inventor da democracia moderna. Para ele, o povo (pela maioria)
autorizava um órgão (o Legislativo) a fazer as leis. Esse órgão era,
naturalmente, superior ao Executivo, a quem cabia executar as leis. A tarefa de
ambos era realizar o bem comum, sob o controle da maioria. Nas mãos da maioria,
portanto, estão o bem estar, a paz, a ordem e a felicidade de que se possa
desfrutar em sociedade. O seu futuro. Se a maioria erra, sofrem todos.
Hoje, as democracias
são constitucionais (o poder do Estado é limitado pela Constituição) e liberais
(a Constituição protege a propriedade, a liberdade e as minorias). Se vivesse
hoje, Hobbes diria que, sem Constituição, nós retroagiríamos ao Estado de
natureza, que ele conceituava como a “guerra de todos contra todos”.
A sociedade é como o
corpo humano. Só percebemos a utilidade de um órgão quando o perdemos, ou
quando ele passa a funcionar mal.Por isso, meu amigo, quero terminar estas
palavras fazendo a louvação da ordem e da paz: esse algo invisível, sem o que tudo
o mais perece.
Sérgio Sérvulo da Cunha."
Roberto J. Pugliese
Editor
Sócio efetivo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina.
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