25 agosto 2014

A escola, a cafetina e o escorpião. ( memória nº 99)


 

 

Memória nº 99
A miséria exacerbada.

 

Durante alguns anos seguidos Lourenço foi coordenador geral do Instituto de Defesa da Cidadania e Direitos Humanos com sede em São Francisco do Sul. No exercício do cargo teve muitas e muitas atuações, a maioria das vezes contra o Poder Público ou grandes personagens da comunidade local ou estadual. Aconteceram diversos enfrentamentos em defesa da cidadania e dos direitos humanos, inclusive com frequência contra agentes da policia civil e militar por abuso de direito.

 

Certa vez, mandaram para o escritório de Lourenço uma senhora miserável que estava na iminência de vir a ser despejada de seu barraco. Era costume na cidade indicarem o seu escritório para tentar resolver problemas de pessoas fragilizadas que não tinham à quem se socorrer e ela foi mais uma.

 

A mulher, cujo nome era Catarina ou Sabrina era do interior do Estado e há quase dez anos residia com duas crianças, seus filhos, dentro do páteo do Colégio Estadual, nos fundos do espaço destinado ao recreio dos alunos à beira de um córrego.

 

O colégio estava passando por  reforma e ao derrubarem o mato, perceberam a existência do deplorável barracão e mandaram mudar.

 

Corre daqui e dali bateu no escritório de Lourenço que se apiedou profundamente do drama da mãe solteira que habitava área pertencente aos domínios do Estado de Santa Catarina.

 

Depois de ter certeza da miserabilidade moral e financeira de Catarina, ou Sabrina, e ter conhecimento que não haveria outro recurso imediato, promoveu, para ganhar tempo um interdito em defesa da posse, por sinal injusta na forma da lei, pedindo a proteção do barracão e seus pertences, enquanto ela iria buscar outro canto para se arranjar com as crianças.

 

Na audiência de justificação, com a presença do procurador do Estado, Magistrado e Promotor Público, a autora deixou claro que não tinha para onde ir e que seus familiares no interior eram muito pobres e que ela não teria como pedir auxilio. Teria que se virar por São Francisco do Sul mesmo.

 

O Magistrado consciencioso, a despeito de pressionado pelo Ministério Público e pelo representante do Estado, deu prazo de 60 dias para que desocupasse, explicando que o terreno era público e não haveria condição de indenizar-se etc...

 

A mulher prometeu que iria atrás de alguma solução insolúvel, e durante o mês que seguiu voltou algumas vezes ao escritório para dizer que não tinha como resolver.

 

(...)

 

Numa tarde, por acaso ou coincidência, Lourenço encontrou com Dalila ou Marília, não tem certeza do nome, que noutra ocasião havia resolvido algum problema e lembrou-se que explorava um bar nas proximidades do porto e que, mesmo pobre exercendo a profissão de cafetina, era de boa índole e poderia ajudar Catarina ou Sabrina e seus filhos.

 

Pediu que passe na manhã seguinte ao escritório para esclarecer melhor a situação e tentar convencê-la em ceder um espaço no bar, pelo menos por algum tempo, para evitar que  Catarina ou Sabrine e as crianças fossem jogadas à rua.

 

Também aproveitou para pedir ao juiz do processo que desse mais trinta dias de prazo pois, praticamente esgotado e a solução não acontecera. Levou a petição em mãos para o despacho.

 

- Doutor entendo o drama da Autora e das crianças, porém o senhor sabe que a lei não ampara. Dou mais quinze dias e não vou mais deferir mais prazo...

 

Para a alegria de Lourenço, Catarina ou Sabrina se acertou com Dalila ou Marilia, a dona do meretrício e em tempo hábil, aquela desocupou o barracão e mudou-se.

 

(...)

 

Passado uns três ou quatro meses, por acaso, Lourenço encontra na rua com Catarina ou Sabrina e questiona sobre a nova morada e fica pasmo.

 

Sabia que Dalila ou Marília era cafetina, que o bar era uma casa de prostituição nas imediações do porto, junto aos estacionamento de caminhões, do páteo de manobra dos trens e garagem de contêineres, mas desconhecia que o lugar era fedido, em razão de soja molhada, que a frequência de homens era constante pela madrugada à fora e que o bar era muito sujo pondo em risco a saúde de seus habitantes.

 

- Não aguentei. Agradeci e estou morando...

 

Mudara-se com as crianças de lá.

 

- Tinha escorpiões nas frestas do quarto. Não havia lugar para as crianças ficarem em paz. De vez enquanto havia brigas, a policia aparecia e assustava todos...

 

Enfim, um drama para a mãe e os filhos miseráveis.

 

Lembrança triste que retrata a pobreza da cidade de São Francisco do Sul e de certo modo, de Santa Catarina, já que por longa data, a mulher e seus filhos residiram dentro do colégio e ninguém se apercebera... Aliás, é o bastante para conclusões. É o bastante para refletir sobre a ilusão e a mentira. O bastante para concluir que a propaganda que se propala é inverídica...

 

Por esse motivo e inúmeros outros que revela a pobreza de espírito que assombra a velha cidade histórica, Lourenço recusou tornar-se fundador, junto com outros convidados, da Academia Francisquense de Letras, pois sem modéstia, entendeu que se viesse a aceitar estaria prestigiando um grupo de pessoas de um lugar culturalmente pobre que não merece o seu prestigio, quer pela arrogância, quer pela ignorância, quer pelo egoísmo da maioria de seu povo.

 

Roberto J. Pugliese
Membro da Academia Eldoradense de Letras
Membro da Academia Itanhaense de Letras
Titular da Cadeira nº 35 da Academia de Letras de São José.

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