Valorização do silÊncio.
O Expresso Vida publica o
texto abaixo muito bem elaborado pelo padre Alfredo J. Gonçalves, cs, pois
também interpreta o conteúdo do mesmo modo do autor.
Vejamos:
“À primeira vista, escrever sobre o Silêncio não deixa de parecer uma
contradição. Mas logo nos damos conta que a contradição é apenas aparente,
superficial. O silêncio, de fato, constitui a fonte primordial e mais
cristalina da palavra: palavra viva, libertadora, criativa e autêntica. É
somente no terreno fértil do silêncio que ela – a palavra – cria raízes, nasce,
cresce, desenvolve-se e produz folhas, flores e frutos. Enquanto a multidão
rumorosa ou o execesso de palavras tendem a distrair, dispersar e semear
confusão, a escuta silenciosa é capaz de captar os “não ditos” ocultos nas
experiências inéditas e irrepetíveis da pessoa humana. Dessa forma o silêncio,
descendo às profundidades mais íntimas e recônditas das entranhas, torna-se
fecundo. E assim, em lugar de palavras ocas e vazias ou de discursos inócuos,
descobre a Palavra nova viva e ativa. Aquela que é capaz de um encontro único
com a natureza, consigo mesmo, com o outro e com o totalmente Outro.
Por isso é que nada tem a dizer de novo quem é
incapaz de fazer silêncio (cinco, dez, vinte, trinta minutos… uma hora!). Quem
não conhece a silenciosa escuta tampouco está preparado para falar em termos de
novidade. Se o fizer, estará irremediavelmente condenado a repetir a si mesmo
ou aos outros. Sem o exercício do silêncio e a capacidade de escuta,
tornamo-nos facilmente uma espécie de “papagaios ou macacos”: com uma rapidez
inusitada e surpreendente aprendemos a imitar a fala e os gestos de um e de outro,
mas nada de inovador e criativo teremos a transmitir. Com razão diz o ditado
que “quem não reflete, se repete”! Somente o silêncio rejuvenesce as palavras,
por um lado conferindo-lhes um significado sempre vivificante, por outro
desvendando nelas e em suas entrelinhas o segredo da Palavra. Em outras
palavras, o silêncio é o invólucro de um “tesouro oculto” – do mistério que dá
sentido à existência humana.
“O segredo da existência humana” – dizia o
atormentado escritor russo Dostoiévski – “não está somente em viver, mas
especialmente em saber porque se vive”. Em certo sentido vai além do grande
dramaturgo inglês Shakespeare, na tragédia de Hamlet: “to be or not tobe, that is the question” (Ser ou não ser, eis a
questão). Ou seja, não nos basta a consciência de ser ou não ser. Desde o
nascimento até a morte, do berço ao túmulo, de forma consciente ou
inconsciente, carregamos sobre os ombros essa pergunta fundamental: de saber não apenas quem somos, mas também
de onde viemos, para onde vamos, e sobretudo saber o “por quê” nos encontramos
sobre a face da terra. O que fazer com os dias, meses, anos que nos restam
viver? Pergunta fundamental com a qual conseguimos conviver mais ou menos
serenamente e sem maiores preocupações, mas que, à primeira crise, emerge do fundo
das correntes subterrâneas mais profundas, provoca ondas incontroláveis,
reclamando uma resposta. Instalam-se as dúvidas e as perguntas, os medos e as
inquietações, ao mesmo que se impõe a necessidade de encontrar uma razão, por
mais irracional e momentânea que seja.
São exatamente esses momentos de crise, essas
lacunas cheias de interrogações angustiantes que exigem uma parada para o
silêncio e a escuta. Infelizmente, na grande maioria dos casos, quando essa
pergunta fundamental da existência se levanta diante de nós, costumamos nos
assustar, não raro caímos no desespero, procurando a todo custo fugir dela.
Incômoda como “uma pedra no meio do caminho” – diz o poeta brasileiro Carlos
Drummond de Andrade, é preciso contorná-la e seguir adiante. A tendência é
esconder-nos em meio à multidão anônima ou buscar proteção na televisão, no
rádio, no computador, no telefone, na presença dos companheiros, na conversação
despreocupada, quando não no álcool, na droga ou na violência! Bem mais fácil e
mais cômodo do que parar, refletir, cultivar e digerir em profundidade o
silêncio e suas interpelações, é continuar a caminhar como se nada de grave
estivesse acontecendo. Rugas e outros sintomas do tempo e do sofrimento
costumam nos afastar do espelho – esse incorrigível delator!
Mas há silêncios e silêncios, que embora
entrelaçados, se diferenciam. E ao dizer isso, logo tropeçamos com o silêncio despovoado. Mais exatamente,
o isolamento e a recusa da comunicação, o ato de encaramuja-se sobre o próprio
umbigo. Silêncio que, em lugar de pontes e relações interpessoais, produz muros
e guetos intransponíveis. Encontramo-lo no matrimônio, na família, no convívio
entre pais e filhos, irmãos e irmãs, na vida comunitária e/ou consagrada, no
ambiente de trabalho, nos meios de transporte, nas feiras, nos supermercados,
nos pontos de ônibus e estações… Cada um se fecha sobre si mesmo, faz todo o
esforço para ignorar o que se passa ao redor. É o silêncio ensurdecedor da
cidade, da indiferença, da ausência, do individualismo exacerbado, por exemplo.
Símbolo disso é o uso (e abuso) dos fones de ouvido que servem não somente para
apreciar a música preferida, mas sobretudo para “não ver, não ouvir, não saber”
o que ocorre ao redor. Daí o conceito hoje recorrente de sociedade atomizada, onde
as partículas (interesses e desejos, esforços e paixões), giram em torno do
próprio núcleo (sujeito).
Semelhante despovoamento, porém, pode contrapor-se
ao que poderíamos chamar silêncio
povoado de fantasmas. Costuma manisfestar-se em roupagens estranhas,
tais como pânico, sentimento de perseguição, pesadelos, medos, frustração – uma
verdadeira fobia! Por mais que a essa atitude fóbica se oponham motivações
racionais para exorcizar os fantasmas, estes continuam teimosa e
persistentemente a visitar suas vítimas indefesas e impotentes. Tudo e todos,
dependendo de uma série de circunstâncias, podem aparecer sob a forma de
fantasmas. No fundo, uma atitude doentia e mórbida precede qualquer tentativa
de ver as coisas à luz do dia ou da razão. Os fantasmas sempre retornam,
falam uma linguagem de sons estranhos, promovem danças macabras, que só a
pessoa é capaz de ver, ouvir e sentir. Traumas, mágoas e situações não
resolvidas são, em geral, o combustível de tais “visões”, sejam elas noturnas
ou diurnas.
Vem depois o silêncio
envenenado. Caracteriza-se por olhares oblíquos e atravessadas, poucas
palavras e sempre de duplo sentido, expressões mudas e mais afiadas que as
armas prontas ao combate. Neste caso, em lugar de silêncio, seria mais adequado
falar de mutismo. O ambiente torna-se excessivamente carregado, o ar pesado e
irrespirável. Dois filósofos nos ajudam a compreender esse veneno que se
interpõe entre pessoas, grupos, povos e nações. De um lado, o inglês Thomas
Hobbes, autor do famoso Leviatã,
mostra que “o homem é o lobo do próprio homem”; de outro, o francês Jean-Paulo
Sartre lembra que “o inferno são os outros”. Disso resulta uma vigilância
constante contra tudo e contra todos, onde a autodefesa se reduz a um
permanente ataque, passivo ou ativo. A disputa profissional e carreirista na
política e em outros âmbitos (academia, religião, etc.) podem ser exemplos
desse silêncio permeado de veneno.
Por fim, o silêncio
povoado por um tesouro. É a contemplação silenciosa de feitos, encontros
e recordações sadias e saudáveis. Coisas, pessoas e fatos que formam um
“tesouro”, do qual podemos destilar um verdadeiro elixir para a saúde do corpo
e da mente, da alma e do espírito. Consiste na lembrança e no cultivo da
memória em dimensão positiva. Um olhar retrospectivo e repleto de gratidão e
reconhecimento, capaz de descobrir e recolher as pedras preciosas sepultadas
pelo pó e as cinzas do tempo, reavivando seu brilho luminoso. Os próprios
traumas, sofrimentos e mágoas, vistos sob os raios de uma nova luz, convertem-se
em um tesouro de lições a serem apreendidas e ensinadas à posteridade. Numa
palavra, é a arte de rever e resgatar a história (pessoal e familiar,
comunitária ou coletiva) numa perspectiva simultaneamente fiel e criativa. Em
lugar de repetir seus erros, estes mesmos podem ensinar a superar os novos
desafios que virão pela frente. Talvez seja a verdadeira alquimia da oração!
Para concluir, só este silêncio será capaz de garimpar, em meio aos escombros e
ruínas do passado, uma Palavra viva, capaz de iluminar os caminhos do presente
e, ao mesmo tempo, conferir novo vigor à construção de um futuro justo,
fraterno e solidário.”
O trabalho do padre Gonçalves
merece ser amplamente divulgado. Foi colhido do Espaço Academico da
Universidade Estadual de Maringá, Pr.
Roberto J. Pugliese
Autor de Direito das Coisas,
2005, Leud.
( Colaboração Espaço Academico –
Universidade Estadual de Maringá, padre Alfredo J. Gonçalves )
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