"Criminalização do
aborto
Desde o término da
Inquisição sabemos o que é matéria da jurisdição estatal. Em outras palavras,
que tipos de comportamento o Estado pode impor às pessoas. Custou muito, causou
muito sofrimento, descobrir que a pessoa humana tem fins próprios, para cuja
proteção se erige o Estado; que ela está, por sua transcendência, acima do
Estado, e que a essência da democracia consiste em pôr limites ao poder do
Estado. Ou seja: descobrir a diferença entre a dimensão da moral e a dimensão
do Direito.
A moral diz respeito às
opções fundamentais, aos fins que a pessoa escolhe por si mesma, concernentes à
sua concepção de vida, ao seu aperfeiçoamento e realização como ser humano.
Resumindo: ela diz respeito à esfera da liberdade. A uma esfera impenetrável
pelo Estado, na qual a pessoa responde perante sua própria consciência.
A distinção já estava lá
quando Jesus, salvando a adúltera da lapidação, lhe diz: “vai e não peques
mais”. E aos lapidadores (no que se incluem os incineradores do próximo):
“aquele que não tiver pecado, atire a primeira pedra”.
Se fosse possível
assinalar a data em que essa esfera de liberdadecomeçou a ser reconhecida,
precisaríamos recuar talvez a Spinoza (1632-1677) e a Beccaria (1738-1794),isto
é, à institucionalização do liberalismo (a doutrina das liberdades). Especificamente,
a partir de quando se generalizou o entendimento de que não há crime sem um
dano concreto (isto é, aferível) a outrem (aí incluídos os crimes de perigo, em
que se assume o risco de causar o dano).
Entretanto, nem todo ato
danoso é criminalizável. Nem todo ilícito é um crime, e na decisão que
criminaliza ressaltam elementos de conveniência e oportunidade, sobretudo
quanto à eficácia da sanção aplicável. Shakespeare tangencia esse tema no
“Conto de uma noite de verão”: Shylock, como credor, via-se no direito de
arrancar um naco de carne da perna do seu devedor.
Se me perguntarem se
sou contra o aborto, responderei sim. Somos responsáveis pelo futuro, não só
pelo meio ambiente e pelos conhecimentos que deixaremos às gerações futuras,
mas pela própria existência das gerações futuras.
Entretanto, se me
perguntarem se sou contra a criminalização do aborto também responderei sim. Porque
ela é inútil para o seu alegadopropósito. Em outras palavras: criminalizar o
aborto não é a proteção adequada, necessária e suficiente à vida do nascituro. Exemplo:
em Portugal, onde a interrupção da gravidez é permitida nas dez primeiras semanas
(conforme referendo de 2007), diminuiu expressivamente o número de abortos, e
cessaram as mortes de mulheres durante o procedimento. Os dados existentes
quanto ao aborto no Brasil, bem diferentes e impactantes, são acessíveis na
internet.
Também sou contra a
criminalização do aborto porque atira sobre a mulher –potencialmente sobre
todas as mulheres, mas particularmente sobre esta mulher, na solidão de sua
dramática opção – a responsabilidade, que todos temos, de proteger a
maternidade.
Mas antes de perguntar
às pessoas se elas são favoráveis à descriminalização, importa perguntar se
elas querem mandar, para a cadeia, as mulheres que, postas na difícil contingência
de abortar, tomaram essa decisão. Porque o aborto foi criminalizado sem que nos
tenham feito essa pergunta. "
O texto e o tema é para profunda reflexão.
Roberto J. Pugliese
editor
www.puglieseadvogados.com.br
Autor de Direito das COisas, Leud, 2015.
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