Memórias nº 28
Avenida Itororó.
Por volta de 1958, talvez um
ano antes ou depois, Lourenço foi acometido de hepatite. Não sabe dizer se
foi tipo A, B ou C, apenas que teve que
permanecer se tratando durante três meses acamado. Repouso absoluto.
A doença é transmissível e
das inúmeras hipóteses prováveis de te-la adquirido, asseveraram os médicos,
tenha sido agulhas de injeção mal fervidas. Àquela época eram reaproveitáveis e
deveriam ser fervidas para eliminar vírus e outras infecções. Não eram
descartáveis como atualmente impõe as normas da ciência e da legislação.
Com 9 anos de idade sua mãe
foi sua companhia quase que constante. Dedicada aos filhos, ao lar, à família,
com a hepatite, se debruçou numa tentativa válida em minorar o castigo que a
criança fora submetida. Aliás, na educação
dos filhos foi suficientemente severa para ensinar que antes de
sentar-se à mesa, deveria lavar as mãos e, o guardanapo ir ao colo, quando
iniciar a refeição.
Ensinou as letras e as
ciências das primeiras séries e debateu política junto com o marido na frente
das crianças, de forma a ensiná-los e transmitir pequenas noções da vida.
Aproveitou os meses de repouso coercitivo imposto ao filho, para incentivá-lo à
leitura, com Júlio Verne e Lobato na cabeceira e ensinar-lhe jogar xadrez.
Mãe severa que acompanhou os
filhos nas escolas, impondo-lhes limites e premiando pelos feitos, também como
tal, dobrava-se em ternura e carinho, sem evitar algumas chineladas merecidas
de quando em vez.
Muito comilão, Eduardo, o
irmão mais novo, sempre gostou de
gelatina. Aquelas postas em pequenos potes, vermelhas, geladas, de sabor framboesa. Gelatinas que lembram as cadeiras das mulatas
sambistas, quando atravessam a passarela do samba, por serem firmes e
fixas, mesmo com o traquejo do rebolado cadenciado.
Comia, repetia e pedia mais.
Certa vez, além dos potes para todos degustarem, preparou um travessa, desses
que são destinados às macarronadas
dominicais, provavelmente uma caçarola, e lá, depositou a tal gelatina para
o filho guloso com exclusividade para que se servisse e pudesse comer diretamente
do recipiente, como se fosse um potinho, igual aos servidos usualmente aos
demais mortais.
Sozinho, devorou a gelatina. O restante da família,
devoradores de gelatina na faixa usual da maioria dos brasileiros, conforme
estatística do IBGE, naquela histórica ocasião, ficou com os pequenos potes.
Na primeira infância soube
influenciar os três, no devido tempo, a respeitarem os mais velhos, a
professora e outros dogmas esquecidos nas gerações mais recentes. Soube
transmitir a compaixão e o amor ao próximo e não descuidou da fé. Lúcia, a irmã mais nova, acima da cabeceira de
sua cama, tinha um pequeno quadro com um anjo, e uma breve oração: “ Anjo de Deus que sois a minha guarda,a quem fui confiada por celestial
piedade, iluminai-me,guardai-me, guia-me dirigir-me, governai-me, amem... “ Anos
depois, numa crise qualquer ensinou outra oração para Lourenço: “
Senhor eu sou forte, poderoso e feliz... “
Nos tempos da hepatite
recorda-se bem que a família residia nos altos da Rua dos Ingleses, próximo ao
Hospital Infantil Menino Jesus, que a Prefeitura de São Paulo então construía em frente ao largo, onde
descem as escadas para Rua Treze de
Maio, junto ao teatro Ruth Escobar então ainda inexistente.
Moravam numa casa muito boa,
no início da ladeira que vai em direção à Praça 14 bis, que por coincidência,
anos mais tarde, Lourenço voltou a ela, sede de um cursinho jurídico que se
matriculara, ministrado por um professor oriundo de Curitiba.
Até adoecer Lourenço era
aluno do 3º ano primário do Colégio Santo Agostinho. Diariamente, uns quarenta
minutos antes da aula, após o almoço, sua mãe o levava à pé, até a esquina da
Avenida Brigadeiro Luiz Antonio e o atravessava. De lá, só, seguia pela Treze
de Maio, então uma Rua estreita e antes da Praça Oswaldo Cruz, dobrava à
esquerda, em direção à Beneficência Portuguesa.
Junto ao já grandioso e
respeitado hospital, havia uma escada, muito estreita e precária, a qual
descia, até uma pontezinha de madeira que atravessava o córrego Itororó, um
filete de água límpida, que dos altos da Avenida Paulista descia em direção ao
Vale do Anhangabaú, ajudando ao caudal do rio que leva esse nome e fomentando
as tradicionais repetidas enchentes na então existente piscina do Adhemar, um túnel que passava sob o Viaduto do Chá na
confluência da Avenida São João e anos depois foi reformado na administração do
prefeito Jânio, arqui rival, do anterior
que emprestara o nome para a obra de arte.
Atravessada a pinguela de 5
ou 6 metros de extensão, subia outra escadinha, sempre no meio de densa
vegetação natural, até atingir a Rua Vergueiro, onde diariamente um Guarda
Civil atravessava as crianças para as escadarias que dão acesso à Praça Santo
Agostinho onde está situada a Igreja e o Colégio.
Caminhada diária, longa e
extenuante que propiciou na formação de Lourenço, o horror que tem a esses
exercícios, agravados com a idade, notadamente sob o sol à pino do meio dia,
após o almoço. Inesquecíveis, mesmo com a distancia temporal.
Muito pitoresco o trajeto e a
cidade: São Paulo elegante de 50 anos atrás.
À tarde, descia as escadarias
e retornava à Beneficência Portuguesa, junto à Rua Maestro Cardin, onde seguia
em direção à Rua Pedroso, até a casa de sua avó, que o esperava... Mais
tranqüilo por ser descida e no horário, um cair de tarde sempre mais agradável.
Lembra-se bem que no caminho,
próximo ao Hospital, no inicio da ladeira da Rua Maestro Cardin, havia um edifício
no qual morava a professora, dona Manuela,
que pelas formas e vestes, provocava já àquele inicio de puberdade, sintomas de
sua masculinidade e visões secretas elucubradas numa imaginação prodigiosa. Dona Manuela, moça loira, de longos
cabelos e curvas maravilhosas, onde deixava braços lépidos e claros que
manuseavam o giz com perfeição... Lembra-se bem de uma tarde durante a qual
criou coragem e resolveu subir e visitar a encantadora professora.
A casa da vovó Conceição era nas proximidades da
esquina da Rua Pedroso. Próxima a Fabrica Taco de Ouro. Uma casinha sem jardim,
com três andares, com duas habitações distintas cujos fundos avistava o que
restara da Mata Atlântica original, às
margens do córrego Itororó. Naquele matagal havia o projeto da Avenida Itororó:
- Desde que sou criança ouço
falar que será construída a Avenida Itororó..., dizia a avó para todos ouvirem.
Lembro bem que Washignton Luiz quando foi prefeito falou nessa avenida...
Quinze ou vinte anos depois
toda a paisagem se transformou: A mata deu lugar a Avenida 23 de Maio,
canalizando o Itororó, que está sob o canteiro que ornamenta e forma a ilha que
divide as duas pistas de rolamento. A Rua Pedroso, deu lugar ao Viaduto de mesmo nome, demolindo para tanto diversas
casinhas, inclusive a fábrica que foi se instalar à Rua da Mooca, mas mantendo de pé, a saudosa casa da vovó...
Até alguns anos antes, sua
avó e tias residiam na mesma rua, porém uns
200 metros acima, depois da esquina da Rua Santa Madalena. Acima, quase
em frente de uma Igreja alemã. Uma casa bem maior, que deu lugar a um curso
jurídico de pós-graduação que se mantém até hoje sob a responsabilidade de um
renomado jurista paulista.
Tempo que a Rua Maestro Cardin
era mão dupla.
De um lado era a casa da dona
Ema e seu Tuffi e de outro, as vizinhas eram, Gina, a filha e Angelina, a mãe,
viúva, ambas já com idade. As velhinhas eram bem amigas da família e davam
bastante atenção ao Lourenço, que sempre que ia visita-las lhe eram servidos
inesquecíveis pãezinhos fritos pela dona Angelina e ouvir histórias lidas de
jornais italianos que recebiam em casa.
Interessante que mantendo
hábitos de 30 ou 40 anos atrás, dos tempos que talvez a cidade mantinha os
charmosos Lampiões de Gás para iluminar as vias públicas, as velhinhas guardavam
na gaveta do criado-mudo um apito, para chamar a polícia em caso de perigo.
Esse é o quadro que Lourenço
viveu na cidade de São Paulo, que então crescia, não podia parar, na qual viviam pouco mais de hum milhão e meio
de laboriosas almas...
Bons tempos !
Freqüentando quase que
diariamente a casa da avó na espera do pai que ao retornar do cartório à noite
passava por lá para pegá-lo, conheceu muitos parentes e tornou-se íntimo dos
tios e tias-avós, primos de segundo e terceiro grau e amigos da família que
freqüentavam aquela casa que era sempre acolhedora.
Lembra-se de tia Brasilina,
que o impressionava pelo defeito na perna que a fazia manca. Tia Tereza tinha
longos cabelos bem branquinhos e às vezes umas primas distantes levavam suas
filhas: Uma alta e outra menorzinha chamada Izildinha.
Com a hepatite parou por uns
tempos suas idas à casa da avó. E por circunstancias foi reprovado no Colégio.
No ano seguinte repetiu o 3º ano primário.
Roberto J. Pugliese
presidente da Comissão de Direito
Notarial e Registros Públicos –OAB-ScMembro da Academia Eldoradense de Letras
Membro da Academia Itanhaense de Letras
Titular da Cadeira nº 35 – Academia São José de Letras
Autor de Terrenos de Marinha e seus Acrescidos, Letras Jurídicas
Autor de Direitos das Coisas, Leud
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