Autor – Marcos Meira
Não fui sempre assim, não, meu senhor.
Tive pai, mãe, irmãos. Todos por aí. Por
esse mundão de meu Deus. Se acredito em
Deus? Deus é uma joia. O resto é bijuteria.
Mas sou sozinho. Já tive a Lurdes... Bem,
preciso catar lixo. O que as pessoas desprezam
é pão pra mim. E elas fingem que eu
não existo. Nem um bom dia eu ganho. Nem
do senhor.
O senhor não reparou? Chegou
aí, fotografando, não
falou nada. As pessoas
não têm sensibilidade,
não, meu senhor. Elas
choram com a novela.
E a realidade? Elas
se fecham em casa –cadeados, câmeras,
muros... Ninguém tá
protegido, não, meu
senhor. Eu mesmo tenho
medo. O senhor se
assusta?
Pois é. Tenho
medo, sim. Moro na
rua. E sempre tem alguém querendo fazer
alguma maldade. Até mesmo gente igual a
mim. É tudo igual. Rico. Pobre. Tudo quer
é poder. O senhor tem fogo? Não fuma?
Eu queria parar. Beber? Não bebo, não,
meu senhor. Preciso estar atento. À noite, o
mundo fica mais perigoso. Não quero briga.
Mas sou bom lutador. A Lurdes sabia disso.
Quem foi a Lurdes? Deixa pra lá. O que o
senhor quer aqui? Fotos? Tem tanta coisa
linda nessa vida, meu senhor. Por que foto
minha? O senhor fica calado. Tem vergonha?
Vergonha de ter roupa boa, casa, mulher,
filhos... Tudo limpo, bem arrumadinho. O
senhor é igual aos outros. Não? Ninguém
liga pra mim. Nem a Lurdes se preocupou.
A Lurdes? O senhor insiste. Quer saber
da Lurdes, né? Bem, amei aquela mulher.
Tava sem ninguém. O senhor entende, não
entende? E a Lurdes apareceu. Os olhos
grandão e pretos. Os cabelos longos e cheirosos
e macios. Lurdes... Prometeu amor
pra sempre. Eu fiquei feliz. E nem ligava o
dinheiro pouco. Felicidade não é dinheiro
– é amor. O senhor sabe, não sabe? Aluguei
um barraco. Mudei com ela. Aí, um dia,
eu tava esperando o ônibus. Era cedo. Uma
neblina baixa. Me disseram que o motorista
nem freou. Ele estava bêbado. E fui
arremessado pra longe. Bati com a cabeça.
Fiquei desacordado.
Mês e meio no hospital.
E nenhum sinal da Lurdes. Tive alta. A
cabeça coalhada de dúvidas. Fui procurar a
Lurdes. Perto do nosso barraco... Não queria
lembrar. Mas agora que comecei, vou contar.
Cheguei perto do barraco. Vi a Lurdes.
Vinha vindo agarrada com outro homem.
Parecia feliz. Não aguentei. Pulei em cima
do safado. Bati muito – ah, como eu bati!
Tava com raiva. E a Lurdes? Gritava. Pedia
socorro. Me chamava de monstro. Dizia
que eu tava matando o homem dela. Ouvi
isso. Parei. Olhei pra Lurdes. Meu coração
ficou pedra. Fui embora. Pra onde? Vaguei.
Divaguei. Parei debaixo da marquise. A
chuva. O frio. A solidão. E perdi o sentido.
Quanto tempo? Não sei. Acordei. Demorei
a entender a realidade. Pensei em suicídio.
Mas já tava morto. Não era mais homem,
não, meu senhor. Foi isso. Pouca coisa. O
senhor tá pensando? Pode ser. Pensando
bem, essas fotos podem até ajudar.
Quem
sabe a Lurdes vê e acha que eu virei alguém
na vida? Sei que é ilusão. Mas o que não é
fantasia nesse mundo? O senhor já sofreu
por amor? Não quer responder. Sei, eu
entendo. Somos iguais, meu senhor. Somos
gente. A diferença é que eu moro na rua. Por
que a Lurdes mentiu pra mim? O senhor não
sabe responder? O senhor já vai? Também
vou indo. Preciso catar lixo. É assim que
finjo esquecer essa dor.
( Às crianças de boa vontade: o
homem
que inspirou essa crônica
costumava
fazer do Céu de Barreiros a sua
morada.
Mudou-se. E, recentemente, foi
agredido
por quatro rapazes, no Centro da
Capital.
Lembrei-me das Palavras de
Cristo: “Pai,
perdoa-lhes! Eles não sabem o
que estão
fazendo”.)
( Marcos Meira – Jornal de Barreiros – Outubro )
O
Expresso Vida parabeniza o autor do texto pela sensibilidade revelada.
Roberto J. Pugliese
www.pugliesegomes.com.brpresidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos –OAB-Sc
Membro da Academia Eldoradense de Letras
Membro da Academia Itanhaense de Letras
Titular da Cadeira nº 35 – Academia São José de Letras
Autor de Terrenos de Marinha e seus Acrescidos, Letras Jurídicas
Autor de Direitos das Coisas, Leud
Ótimo texto! Marcante.
ResponderExcluirValeu, Roberto!
ResponderExcluirObrigado por respeitar\divulgar as minhas palavras.
abraços
meira