27 outubro 2013

PESSOAS INVISÍVEIS -


 Pessoas Invisíveis

Autor – Marcos Meira

 

Não fui sempre assim, não, meu senhor.

Tive pai, mãe, irmãos. Todos por aí. Por

esse mundão de meu Deus. Se acredito em

Deus? Deus é uma joia. O resto é bijuteria.

Mas sou sozinho. Já tive a Lurdes... Bem,

preciso catar lixo. O que as pessoas desprezam

é pão pra mim. E elas fingem que eu

não existo. Nem um bom dia eu ganho. Nem

do senhor.

 

O senhor não reparou? Chegou

aí, fotografando, não

falou nada. As pessoas

não têm sensibilidade,

não, meu senhor. Elas

choram com a novela.

E a realidade? Elas

se fecham em casa –cadeados, câmeras,

muros... Ninguém tá

protegido, não, meu

senhor. Eu mesmo tenho

medo. O senhor se

assusta?

Pois é. Tenho

medo, sim. Moro na

rua. E sempre tem alguém querendo fazer

alguma maldade. Até mesmo gente igual a

mim. É tudo igual. Rico. Pobre. Tudo quer

é poder. O senhor tem fogo? Não fuma?

Eu queria parar. Beber? Não bebo, não,

meu senhor. Preciso estar atento. À noite, o

mundo fica mais perigoso. Não quero briga.

Mas sou bom lutador. A Lurdes sabia disso.

 

Quem foi a Lurdes? Deixa pra lá. O que o

senhor quer aqui? Fotos? Tem tanta coisa

linda nessa vida, meu senhor. Por que foto

minha? O senhor fica calado. Tem vergonha?

Vergonha de ter roupa boa, casa, mulher,

filhos... Tudo limpo, bem arrumadinho. O

senhor é igual aos outros. Não? Ninguém

liga pra mim. Nem a Lurdes se preocupou.

A Lurdes? O senhor insiste. Quer saber

da Lurdes, né? Bem, amei aquela mulher.

Tava sem ninguém. O senhor entende, não

entende? E a Lurdes apareceu. Os olhos

grandão e pretos. Os cabelos longos e cheirosos

e macios. Lurdes... Prometeu amor

pra sempre. Eu fiquei feliz. E nem ligava o

dinheiro pouco. Felicidade não é dinheiro

– é amor. O senhor sabe, não sabe? Aluguei

um barraco. Mudei com ela. Aí, um dia,

eu tava esperando o ônibus. Era cedo. Uma

neblina baixa. Me disseram que o motorista

nem freou. Ele estava bêbado. E fui

arremessado pra longe. Bati com a cabeça.

Fiquei desacordado.

 

Mês e meio no hospital.

E nenhum sinal da Lurdes. Tive alta. A

cabeça coalhada de dúvidas. Fui procurar a

Lurdes. Perto do nosso barraco... Não queria

lembrar. Mas agora que comecei, vou contar.

Cheguei perto do barraco. Vi a Lurdes.

Vinha vindo agarrada com outro homem.

Parecia feliz. Não aguentei. Pulei em cima

do safado. Bati muito – ah, como eu bati!

Tava com raiva. E a Lurdes? Gritava. Pedia

socorro. Me chamava de monstro. Dizia

que eu tava matando o homem dela. Ouvi

isso. Parei. Olhei pra Lurdes. Meu coração

ficou pedra. Fui embora. Pra onde? Vaguei.

Divaguei. Parei debaixo da marquise. A

chuva. O frio. A solidão. E perdi o sentido.

Quanto tempo? Não sei. Acordei. Demorei

a entender a realidade. Pensei em suicídio.

Mas já tava morto. Não era mais homem,

não, meu senhor. Foi isso. Pouca coisa. O

senhor tá pensando? Pode ser. Pensando

bem, essas fotos podem até ajudar.

Quem

sabe a Lurdes vê e acha que eu virei alguém

na vida? Sei que é ilusão. Mas o que não é

fantasia nesse mundo? O senhor já sofreu

por amor? Não quer responder. Sei, eu

entendo. Somos iguais, meu senhor. Somos

gente. A diferença é que eu moro na rua. Por

que a Lurdes mentiu pra mim? O senhor não

sabe responder? O senhor já vai? Também

vou indo. Preciso catar lixo. É assim que

finjo esquecer essa dor.

 

( Às crianças de boa vontade: o homem

que inspirou essa crônica costumava

fazer do Céu de Barreiros a sua morada.

Mudou-se. E, recentemente, foi agredido

por quatro rapazes, no Centro da Capital.

Lembrei-me das Palavras de Cristo: “Pai,

perdoa-lhes! Eles não sabem o que estão

fazendo”.)

 

( Marcos Meira – Jornal de Barreiros – Outubro )

 

O Expresso Vida parabeniza o autor do texto pela sensibilidade revelada.

Roberto J. Pugliese
www.pugliesegomes.com.br
presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos –OAB-Sc
Membro da Academia Eldoradense de Letras
Membro da Academia Itanhaense de Letras
Titular da Cadeira nº 35 – Academia São José de Letras
Autor de Terrenos de Marinha e seus Acrescidos, Letras Jurídicas

Autor de Direitos das Coisas, Leud

2 comentários:

  1. Ótimo texto! Marcante.

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  2. Valeu, Roberto!

    Obrigado por respeitar\divulgar as minhas palavras.

    abraços

    meira

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