Os latoeiros
que passeiam nas nuvens
Vitor Hugo Noroefé
“...o menino sentia um desespero
sem limites e chorava em silêncio, pensando na pobre casa despojada de toda a
sua infância.”
- Albert Camus (‘O Primeiro Homem’)
para o Nino, amigo de infância, que já se foi
Os
latoeiros da minha infância batem suas latas, agora transformadas em bacias
copos canecas.
Os latoeiros berram pelas ruas da minha terra
de pó e fome – bicho-de-pé e areia. Lá
vou eu para dentro dos escaninhos do mundo, feito um grito um gemido um ronco.
E os
latoeiros não dão trégua. Como eu,cheiram a banha rançosa, como é o cheiro da
miséria. Como eu, fedem a picumã, como é o fedor da fome.
Esses
latoeiros que vejo, pelas frestas da madeira podre do casebre, que gritam o
pregão de seus artefatos, são laços que revigoram meu sonho. O sonho impróprio
de gritar quando a fome esgoela, quando o
tempo gela e gelado fica fincando na marra seu prego enferrujado.
Ricardo
Reis , esse negrinho mirrado, Micróbio mesmo, é meu parceiro de dias e noites
sobre um frio vendo estrelas. Micróbio que conversa com os latoeiros da minha
infância é quem traz eles até o nosso
poço. E me chama para distribuir água. A única graça é dar o balde cheio de
graça e ouvir o riso de quem um dia foi meu susto.
Depois
disso, divido com os latoeiros da minha infância as carnes velhas de churrascos
passados. Esmolas latifundiárias de um tempo roto, vazio de esperança.
Lá vou
com eles, pelas ruas de uma cidade morta. Eu ali, sentado na frente da padaria
a torrar com os olhos o cheiro do pão; eu ali, no meio do mato, a esperar uma
preá – ou será periá? – pra comer na noite.
E lá
vamos todos nós, correndo por uma sanga altiva & engenhosa, que corta a
cidade de cabo a rabo. Molhados de esgotos. Vestidos de dejetos.
Um
cheiro de óleo & merda no ar: Micróbio, eu e os latoeiros-crianças
acompanhamos, em correria, o mundo férreo da RFFSA. Roubamos lingüiças,
melancias, arroz-de-leite – e dividimos o roubo entre vagões entupidos de soja.
O mundo
é vasto? Pode ser. Mas o imposto não é o mesmo para todos.
Ricardo
Micróbio nada teme. Tem o corpo franzino e a alma valente. O peito ronrona, mas
a boca berra.
O ranho
sempre escorrendo pelo nariz são nossos uniformes, sempre reconhecidos.
Pousamos de marginais pelas ruas do centro. Dentro de um lugar de pouco mais de
dez mil almas viventes,
se
tanto.
Ainda
assim, estamos acima dos latoeiros nos números da indigência presente e futura.
Essa
decifração de miséria vem da boca vermelha de Ataliba:
“Torrando
a merda, pra comer o torresmo”.
Com o
frio doendo em cada pedaço do corpo, um dia eu e Ricardo Micróbio acompanhamos
os latoeiros de minha – e nossa – infância. Equipados de blusões esfarrapados e
congas rasgadas entramos em suas casas.
- A
miséria tem cheiro e fedor –
A pampa
é o sertão com frio.
Um
caldo de ossos e sal. E isso é muito, roendo.
Ainda
hoje, olhando o céu-chumbo, vejo os latoeiros da nossa infância cruzando as
nuvens.
E
Ricardo Reis batendo palmas e rindo, vai na frente carregando a gamela da vida
perguntando sem parar:
- Tu
tem Medo do quê? Eles são como a gente.
(Fortaleza,
CE, 01.11.2012/13.09.2013)
Roberto
J. Pugliese
presidente
da Comissão de Direito Notarial e Registros Pùblicos
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