De
virgens e putas
São Gabriel da Cachoeira, no
Alto Rio Negro, abriga a maior população indígena do Brasil, com 22 etnias. Lá,
é possível comprar a virgindade de uma indiazinha de 10, 12 anos por uma caixa
de bombons. Como nas aldeias ninguém tem biotipo europeu, acesso à internet ou
valor de mercado, o assunto não vai invadir redes sociais como o caso da jovem
catarinense que decidiu leiloar a própria virgindade.
“Película dérmica presente na
entrada da vagina. Impermeável, normalmente possui uma abertura anelar, por
onde são eliminadas secreções e a menstruação. Em certos casos, a abertura é
muito estreita ou pode não existir, requerendo intervenção cirúrgica para
evitar a retenção de líquidos”. Eis aí, com rigor acadêmico, a descrição do
hímen. Tão excitante quanto as ilustrações de um livro que matou a curiosidade
sexual de muitos adolescentes da minha geração: Nossa vida sexual, de Fritz Kahn.
Eram uns desenhos grosseiros, moralistas, tão eróticos quanto as entranhas dos
ratos de laboratório. À falta dos manuais do Carlos Zéfiro, o Magnífico, aos
quais só uns poucos privilegiados tinham acesso (eram, principalmente, os
amigos dos jornaleiros; doce clandestinidade), íamos de Kahn. Mas não só dele.
Existiam, de fato, currais de iniciação sexual. Prostitutas e empregadas
domésticas cumpriam a função sócio-sexual de aliviar o dilúvio hormonal que
inundava sonhos e delírios de adolescentes. No Peru (sem duplo sentido),
acompanhada de altas doses de preconceito e brutalidade, a meninada de classe
média usava uma expressão para declarar vitória no quarto dos fundos: “Tirarse
a la chola” (em bom português: traçar a empregada). Pouca informação na família
e hipocrisia completavam o quadro.
O hímen atravessou a história como instrumento de poder. Sua ruptura foi, não
raro, um símbolo de status. O jus primae noctis, o Direito à Primeira
Noite, dava ao senhor feudal o direito de violentar as noivas dos servos na
noite de núpcias. Era um recado: neste terreiro, o galo sou eu. Segundo alguns
historiadores, esta instituição medieval durou até o século XIX em certas áreas
do sul da Itália. Mesmo que não consagrado em textos legais, existem fortes
evidências de que os senhores de engenho do Brasil faziam o mesmo com as
escravas. Claro que, em numerosos casos, nem esperavam o casamento para
consumar a violência.
Ainda na Itália, havia lugares onde uma espécie de código de honra exigia que
se pendurasse na janela o lençol manchado de sangue logo após a noite de
núpcias. Mais importante do que destacar esses fatos é a pergunta: por que a
virgindade sempre foi tão valorizada ? Sem pretensão de avançar numa psicologia
de botequim, completo: por que o prazer foi tão dura e longamente censurado ?
Essas reflexões vadias surgem na esteira de uma notícia intensamente circulada
nas redes virtuais de comunicação. Mereceu matérias em jornais, suscitou
debates na televisão, bombou nas redes sociais. Uma jovem catarinense de 20
anos colocou em leilão sua “película dérmica”. Depois de uma disputa acirrada,
um japonês arrematou o minifúndio de poucos milímetros quadrados por R$ 1,5
milhão. As regras para consumação do negócio parecem roteiro de uma cirurgia:
uma hora de duração, intimidade limitada (beijo, nem pensar), pagamento
combinado com antecedência. A mocinha, que se diz leitora de Shakespeare (como
as misses de antigamente diziam, invariavelmente, que liam O pequeno príncipe e
apreciavam Somerseth Maugham ...), planejou fazer no ar o que outras
prostitutas, a preços mais acessíveis, fazem há séculos em terra. Depois de
receber o michê milionário, talvez descole um convite da Playboy ou se
candidate ao próximo BBB. Está tendo seus minutinhos de fama, na gloriosa
companhia de popozudas desfrutáveis. Se quiser aumentar o lucro, pode fazer uma
cirurgia de reconstrução do hímen, vendendo depois uma nova intimidade biônica.
É curioso que isso aconteça em plena era da socialização dos métodos
contraceptivos e da liberalização dos costumes. É comum namorados dormirem nas
casas dos pais. A descoberta do sexo saiu da clandestinidade. Carlos Zéfiro
ficou démodé, atropelado por sites de sexo explícito. Talvez tenha sobrado a
velha curiosidade pelo mistério das profissionais. Que tipo de talento erótico,
qual habilidade rara teriam as prostitutas ? Será possível transformar uma
relação comercial num encontro amoroso ? A verdade é que houve uma sofisticação
do negócio e os bordéis cercados por tapumes entraram em declínio.
Não é de hoje que a prostituição, condenada pelos eternos “defensores da
família”, é tolerada. A Igreja Católica, por exemplo, a considerava, segundo
Nickie Roberts (As prostitutas na História, editora Rosa dos Tempos),
“uma espécie de dreno, existindo para eliminar o efluente sexual que impedia os
homens de elevar-se ao patamar do seu Deus”.
Aprendemos, dolorosamente, que os religiosos tinham seus próprios métodos para
“drenar” o desejo e as fantasias que nem a autoflagelação conseguia eliminar.
Voyeurismo, pedofilia, amores secretos, famílias não assumidas.
São Gabriel da Cachoeira, na
região do Alto Rio Negro, abriga a maior população indígena do Brasil, com 22
etnias. Lá, é possível comprar a virgindade de uma indiazinha de 10, 12 anos
por uma caixa de bombons, um celular velho ou uma nota de R$ 20. Entre os
acusados por esse comércio abjeto, há comerciantes locais, um ex-vereador, dois
militares do Exército e um motorista, segundo reportagem da Folha de S. Paulo.
Todos brancos, parte da elite daquela região miserável. Praticamente não há
investigação policial e as meninas não têm qualquer tipo de apoio médico ou
psicológico. Depois de ouvir dez meninas, a promotora local disse que “é uma
coisa animalesca e triste”. As vítimas são ameaçadas de morte se denunciarem os
criminosos. Coisas do Brasil profundo. Como nas aldeias ninguém tem biotipo
europeu, acesso à internet ou valor de mercado, o assunto não vai invadir redes
sociais, nem criar a expectativa da ruptura do hímen da jovem prostituta
catarinense. Pobreza não vende.
Jacques Gruman
O texto bem elaborado revela de forma clara o que ocorre com
um país que se diz desenvolvido, considerado a 6ª. economia do mundo, na qual
suas crianças, seus povos originários e de um modo geral, os mais frágeis são
tratados. Sem comentários.
Roberto J. Pugliesewww.pugliesegomes.com.br
( Colaboração de Victor Hugo Noroefé )
Linda crônica que retrata e denuncia uma realidade adversa: eis um bom uso da palavra literária!
ResponderExcluirSão por essa e outras, que me pergunto muitas vezes, "pra que serve o ser humano"? Quando formos extintos, possívelmente por nós mesmos, não faremos a menor falta!
ResponderExcluir@AngToledo