Memória nº 84
O botequim, a pousada e a promessa.
A ilha do Cardoso é uma projeção da Serra do Mar, situada no
extremo sul do Estado de São Paulo, adentrando pelo mar além das divisas
territoriais do Paraná, sendo a principal a maior de um arquipélago constituído
por inúmeras ilhas e ilhotas junto ao
Lagamar.
O Lagamar é constituído por
centenas de ilhas entre as quais, além do Cardoso, destacam-se a Ilha Comprida,
a de Cananéia, das Peças, de Superagui, Castilhos, Figueira, Tumba, do Mel e
outras dezenas de ilhotas menores espalhadas desde de Paranaguá, até Iguape,
enfeitando o litoral sul paulista e norte paranaense.
Nesse arquipélago, em suas
praias e junto a orla continental habitam há séculos grupos de caiçaras
tradicionais, que sobrevivem de pesca artesanal, de agricultura familiar e de
um extrativismo bem tosco e rudimentar. O turismo rural está tomando posição na
economia local.
A serra do Cardoso é coberta
por floresta intacta ainda em sua maior parte e atinge mais de novecentos
metros no seu ponto mais elevado. Mais ao sul a restinga que tem mais de vinte
quilômetros de comprimento, com largura média de apenas duzentos metros,
ladeada por um lado pelo canal e do outro pela praia oceânica Atlantica.
Há pouco mais de três quilômetros
da serra, na extremidade norte da restinga, o Poleiro do Pato em meados dos
anos cinquenta do século passado, assentou um loteamento regularizado nos
termos da legislação de então, denominado Marujá. Rapidamente foi ocupado por
caiçaras tradicionais da ilha e das imediações e também por turistas que
adquiriram lotes e ergueram suas casas para férias e laser.
Firmino Rodrigues um caiçara
oriundo do litoral norte do Paraná se estabeleceu por lá quando a empresa
titular daquelas terras estava implantando o empreendimento. Ele e sua mulher
Mariazinha, como a chamava, ergueram uma casa modesta de frente para o canal e
estabeleceram um barzinho, onde mais do que cachaça descansada com ervas ou em sassafrás,
vendia de tudo: sabonetes, sal de frutas, escova de dentes, Sonrizal, querosene,
arroz, Tubaína, sal, açúcar e tudo que caiçaras ou turistas precisavam... E
assim Firmo cuidou da família por longa data.
Lourenço o conheceu na
primeira ida que fez à ilha. Fôra de automóvel pela estrada do sul: Um caminho
aberto pela Sudelpa pelo comando do governador Laudo Natel, que partindo de
Itapitangui, um bairro no continente, segue costeando os diversos canais e o é
da serra, por mais de sessenta quilômetros,
até chegar na sede da vila do Ariri.
Àquele tempo a estrada era inteiramente transitável. De lá, junto com
seu amigo Zé Antonio, alugaram um barco e atravessaram para o Marujá, onde passaram
um final de semana.
Dormiram na casa do Adalmir, então modesta pousada que abrigava
os poucos aventureiros que lá ousavam chegar e conhecer dada a grande
dificuldade.
(...)
Os anos passaram e Lourenço
então já amigo de Aroldo, casado com a filha mais velha de Firmino, acompanhou
a perseverança e dedicação de ambos, que na cidade, compraram um terreno em
comum, dividiram e cada um, com ajuda recíproca, ergueram duas casas. Aroldo
permaneceu morando na casa do japonês, junto ao rio Olaria na qual trabalhava
de caseiro e alugou a sua.
Firmo mudou-se para Cananéia
e alugou sua casa e o pequeno empório no Marujá. Trouxe a família para que os
três filhos homens pudessem ter um estudo melhor na cidade.
Lourenço já residindo em
Cananéia acompanhou de perto o sonho de Firmino em abrir um bar na Rua
Bandeirante, e valendo-se de sua fama, adquirida ao longo de anos, sobreviver
do aluguel e do novo comercio: Bar e Lanchonete Firmo do Guarujá.
Estava negociando o ponto
quando ficou doente. Situação horrível. Crianças para educar. Fora do seu sítio
natural, longe do agasalho terno dos caiçaras do Marujá e dos turistas seus
amigos. Sem eira ou beira, de cama, foi rapidamente definhando.
Lourenço chegou a leva-lo
numa ocasião para São Paulo onde ficou internado. Mas a doença o pegara para
liquidar e acabou falecendo em 1982.
Os três meninos foram
trabalhar. Beto o mais velho tomava conta da banca de jornal e Valdecyr
entregava jornais. Depois o Serginho também foi para a banca Caravela, única da
cidade. Os jovens trabalhando e o aluguel do bar do Marujá ajudava a sobrevivência
da família, até que o inquilino, primo do finado proprietário, decidiu que não
pagaria mais nada.
Pânico. Iriam passar fome.
Lourenço propôs ação de despejo e cobrança... e passado alguns meses, o bar
retornava à posse direta da família.
(...)
Passaram-se os anos. Lourenço
mudara-se para Itanhaém, depois para o Tocantins e nunca mais voltara ao
Marujá. Nas vezes que ia a Cananeia, não coincidia poder ir até o bucólico
recanto. Até que já residindo em São Francisco do Sul, houve aproveitar uma
festa do bairro, e num final de semana de Julho, foi passar dois dias por lá.
Lourenço lembra que fazia
pelo menos quinze anos que não conversava com um velho amigo, ex-gerente do
banco do Estado, única agencia bancária da cidade ao tempo que vivera em
Cananéia. Estava hospedado na casa do Beto, agora uma modesta mas aconchegante
pousada e junto com Aroldo, sua mulher Rose e diversas outras pessoas seguia
pela trilha em direção ao forró.
Na escuridão da noite,
conversava animadamente com o compadre Aroldo, quando atrás dele, naquela
escuridão, o ex-gerente do Banespa falou:
- Quem está aí contigo Aroldo
é Lourenço. (...)
A voz que não fora estranha
para Lourenço fez com que parasse para olhar e vislumbrou o velho amigo...
Perplexo, ainda soube que Severino não só reconhecera a voz, como também sabia
e tinha na memória o número da sua conta corrente, do tempo que por lá
morara...
(...)
Hora de retornar. Pagar a
conta da pousada, refeição, cachaça...
- Lourenço, aqui você só vai
pagar a bebida. Lembra-se que ao me entregar a chaves da casa, quando promoveu
o despejo do inquilino eu disse que você, sua mulher e seu filho jamais
pagariam casa e comida aqui...
Beto, o filho mais velho do
Firmo, assim agiu. Mesmo Lourenço não se recordando da promessa, procedeu
demonstrando agradecimento e assim tem se comportado nas seguidas oportunidades
que Lourenço tem ido ao Marujá.
O pequeno bar do Firmino
transformou-se na pousada Marujá, administrada pelos três filhos que,
retornaram e voltaram a viver na ilha onde nasceram.
Roberto J. Pugliese
www.pugliesegomes.com.br
Membro da Academia Eldoradense de Letras
Membro da Academia Itanhaense de Letras
Titular da Cadeira nº 35 – Academia São
José de Letras
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