Memória nº 82
Vivendo e apreendendo para que a história não se repita.
Foi durante a madrugada fria da cidade de São
Paulo quase em 1950, às vésperas do tradicional dia do pendura que ele
nasceu. Asdrubal da Cunha já era o prefeito que administrava do Palácio das
Indústrias; Adhemar de Barros sucedera o Embaixador Macedo Soares e governava o
povo paulista no seu gabinete nos Campos Elísios e aquela quarta feira
tipicamente de inverno tinha estampada no Diário da Noite, entre outras
notícias, que La Vie en Rose, cantada
por Edith Piaf, através dos discos de cera de carnaúba, 78” rotações por minuto, tornara-se sucesso
internacional. Inclusive no Brasil.
Num Citroen, 1946, preto, com paralamas laterais
fora da carroceria, estribos expostos e o simbolo da tradicional marca em v sobreposto ao contrário no frontespicio
do radiador, sua mãe, fora levada pelo pai às vésperas para a Maternidade São
Paulo, nas emidiações do espigão da já aristocrática avenida Paulista, na qual
então circulavam bondes elétricos, cujos trilhos eram ladeados por paralelepípedos
que a par de enfeitar o solo, acrescentando charme ao elegante logradouro
serviam para evitar a erosão do asfalto, provocada pela trepidação do transito
daqueles coletivos.
No alto da Bela Vista, bairro suis generis, no qual, de um lado, mansões pertencentes à rica
elite industrial e aos prestigiados fazendeiros de café habitavam, convivendo
harmoniosamente Matarazzo’s e Lunardelli’s,
e de outro, mais ao norte, nos baixios do charco, ao redor da Igreja da Achiropita , nas proximidades do
que alguns anos depois seria aberto o túnel, a avenida e a praça, o mesmo
bairro da Bela Vista era palco de bodegas populares, cercados de cortiços, no qual,
italianos, também em harmonia às transformações sociais que se iniciavam,
estavam cedendo suas casas para chegantes que contribuiam para que a cidade já
alcansasse mais de um milhão de almas.
Nos páteos da aduana, no porto de Santos,
importada pelo Deputado Federal Ortiz Monteiro,aguardavam emboloradas pelo
tempo, a fiscalização severa de seus opositores, as inúmeras caixas com aparelhagem da futura TV Paulista. No ano
seguinte, a TV Tupi, canal 3, a pioneira na América Latina, pertencente ao poderoso
Assis Chateaubriand, sem qualquer fiscalização desembarcou e subiu a serra,
sendo solenemente inaugurada com a presença do presidente da república Getúlio
Vargas, do Cardeal Motta e da graciosa menina Hebe Camargo, entre tantas
autoridades e artistas, dois antes da concorrente que chegara primeiro.
São Paulo era símbolo de progresso, riqueza e
desenvolvimento.A cultura e a organização social paulista já começava a
provocar ciumes. Dispunha de dinheiro, mas o poder político a submetia a
tragédia dos incompetentes, provocando o inconformismo, que outrora levou às
trincheiras milhares de patricios pela Constituição.
Próximo à elegancia da avenida Paulista, o
Pacaembu, estádio municipal, inaugurado em 1940 era então o maior do país. A
Atlantida no Rio e a Vera Cruz em São
Paulo, disputavam musicais em preto e branco, ao som do Bando da Lua e da Orquesta Tabajara, para
exibirem nas grandiosas salas dispostas
ao longo das avenidas São João, Ipiranga
e redondezas, chanchadas estreladas por Mazaropi, Carlito, Grande Otelo,
Virginia Lane, Dorinha Durval e valioso elenco.
A cidade era calma, elegante, com o povo educado, desconhecendo
a violencia e a multidão estúpida dos anos seguintes. Poucos automoveis pelas
ruas arborizadas em que retangulos de gelo de
cinco quilos eram pelas manhãs, deixados nas calçadas por serem raras as
geladeiras domésticas, juntamente com o pão em filão e o leite, envasado em
garrafas típicas com gargalo e a boca largas. Alguns também recebiam exemplares dos concorridos A Gazeta, Folha da Manhã e Diário Popular. Bucólico o cenário da paulicea então ainda romantica e
européia, com garbosos guardas-civis que circulavam equilibrados em bicicletas
pintadas de preto e branco, de paletó e gravata, cacetetes, chapeus e luvas
brancas, contrastando com o azul escuro de seus trajes.
A Via Anchieta ainda não fora totalmente concluída, mas o Hospital das Clínicas já se tornara a menina dos olhos de todos brasileiros. Essa era a síntise de uma cidade, de um povo e do estado federado que renascia com a democracia recém implantada em 1945.Nesse quadro épico, quase perdido no tempo, ele veio à luz.
A Via Anchieta ainda não fora totalmente concluída, mas o Hospital das Clínicas já se tornara a menina dos olhos de todos brasileiros. Essa era a síntise de uma cidade, de um povo e do estado federado que renascia com a democracia recém implantada em 1945.Nesse quadro épico, quase perdido no tempo, ele veio à luz.
Mirrado, magrinho e bem pequeno, com peso e
tamanho ínfimos, logo se recuperou da pressa de ter nascido com apenas oito
meses. Mas chorava muito.
- Doi o ouvido, dizia um. É dor de barriga, dizia
outro. Chama o médico... e a criança chorava dia e noite. Não mamava no peito,
comia pouco e chorava muito. Vamos levar à benzedeira, profetizava alguem
experiente. E o menino chorava.
(...)
Nunca foi um desportista. Não era de fazer força,
usar da violencia ou praticar qualquer atividade esportiva. Jogava futebol,
talvez por ser brasileiro e igual aos demais patrícios, gostar do esporte
bretão. Era péssimo jogador. Muito ruim, nas peladas informais ia para o
gol. No Arquidiocesano, onde estudou por cinco ou seis anos, era o suplente do
timinho da sala de aula.
Percebia que ao repor as bolas que eventualmente
agarrava, pois era frangueiro, mesmo
sendo destro, a sua direção seguia sempre à esquerda. Nos raros jogos de
volei, a situação se repetia. Não dava
muita importancia, mesmo intrigado, pois praticar esporte era tão ruim como ter
que comer fígado ou palmito no almoço e sopa de aveia no jantar... Só por
obrigação.
Comia pouco. Magro, muito magro, também não se
desenvolvia, sendo bem menor que outras crianças de sua idade. Preocupados seus
pais consultaram médicos para ver como resolver a inapetencia e o crescimento.
Não havia remédio: Emunsão de Escote, Óleo de Fígado de Bacalhau, cálcio Genol,
Biotonico Fontoura e outras bogagens da época. ( Não existia Vitasai ) Magro,
pequeno, fracote... era palco de gozação de parceiros maldosos ou amigos
próximos. Uma caricatura nariguda, esquálida que mal parava em pé.
Certo dia, foi decretado que iria para academia de
ginástica. Coisa rara por volta de 1963. Luxo para poucos que gostavam de
praticar esporte. Castigo para ele.
Na avenida Santo Amaro, próximo à rua Verbo
Divino, no primeiro andar de um sobrado sujo e decadente, sobre uma loja qualquer,
Mário Amaral, o conhecido protagonista do Gigante Amaral, das populares cestas
de natal, tinha um dos raros estabelecimentos no genero e lá que foi
matriculado para a prática de exercícios duas vezes por semana.
Um salão escuro, amplo, com aparelhos fixos no
solo e nas paredes, cuja pintura desgastada pelos anos, mostravam um cenário
triste, que mais parecia uma das salas de torturas descritas por Dante, nos
epísódios de sua maior obra.
- Horrível.
Levantar peso, correr, esticar a perna, fazer flexões,
competir com outros jovens mais encorpados,
suar, suar, suar... Ginástica assim e assada. Deitar naquele chão
empoeirado, sujar as mãos, abraçar e se agarrar ao parceiro do lado...( Tanta
coisa melhor para se fazer – ou nada fazer.)
- Que merda. (? ) ( ! )
Não sabia se questionava a trágica situação de sua
vida ou a aceitava pacientemente.
Não sabia como resolver a cina trágica de estudar
química, física, matémática, sair cedo enfrentando ônibus sujo e fedido para
ir, debaixo de chuva fina para escola e ainda ser obrigado a fazer ginástica...
Como resolver o problema que o atormentava. (? ) Era a gota d’água para o copo daquele
adolescente imberbe.
Numa daquelas tarde, no salão sombrio da academia,
o professor Amaral pediu que chamasse seu pai. Urgente. E assim foi feito.
- Seu filho tem um problema no braço. Veja: Não
estica. O esquerdo é normal.
Mexe daqui, mexe dali, levanta, estica, põe para
lá, põe para cá e foram para o médico.
Dr.Aleixo, o ortopedista que o examinou entendeu recomendar alguns exames no Hospital Santa Catarina, onde
atletas de clubes de futebol, se tratavam, dada a alta especialidade no assunto
e equipamentos de primeira linha ali instalados.
Foram vários exames. Num deles, deitado numa cama de ferro, iria ser
fotografado ou algo assim, percebeu que sobre seu corpo, alguns centimetros
acima, uma caixa de ferro pesada, suspensa por cabos e fios, poderia cair e
falou com o médico a respeito.
- Não se preocupe menino. Isso nunca aconteceu...
é bem fixo e preso. Vou ligar tudo, e descer o cabo para passar pelo seu ombro.
Fique tranquilo.
O médico deu as costas e a aparelhagem caiu,
fazendo um estrondo e assustando a todos... mas sem machuca-lo, pois a peça se
espatifou rente à sua cabeça e ombro esquerdo. Coisas do destino.
(...)
Conclusão do ortopedista: Seu filho ao nascer deve
ter quebrado o bracinho. Ou um familiar o pegou de mal jeito ou no hospital
alguma enfermeira, ou caiu do berço... enfim, talvez a babá ou a madrinha ou
alguém por descuido quebrou com poucos dias de vida e, por não saber se expressar,
o braço foi sedimentado naturalmente, porém torto, dando esse defeito, que é
imperceptível...
Assim, por longos meses, num passado já distante,
Lourenço chorara no colo da avó Conceição, ora nos braços da tia Leta, ou nos
seios de sua mãe. Ora receitavam chá para prender, ou leite para soltar, ou
pingavam óleo no ouvido esquerdo, ou alcool no ouvido direito...e nada do choro
parar.
Chorava sozinho no berço, nos braços do pai, do
tio, do avô e numa angustiante injustiça irreparável, com o bracinho quebrado,
se mostrava um nenezinho chato... E
sendo mínima a diferença comparado com o braço esquerdo, ninguém percebia que o
antebraço, junto ao ombro direito se atrofiara alguns poucos centímetros e, a
dificuldade para esticá-lo, não fora notada por ele ou por qualquer adulto.
Enfim, a receita foi curta e horrivel: - Operar
não vale a pena. Melhor praticar esportes. Jogar tenis, por exemplo... disse o
médico na sua sabedoria. O exercício nessa idade deve ajudar.
- Veja os braços da Maria Esther Bueno !
Com raquetes novas que ganhara de seu avô, todo fardado à carater, tentou
duas partidas, porém... Tentou pingue -pongue, menos exaustivo... porém...
Porém a cidade cresceu, extrapolou os próprios
limites, subiu a serra de Mairiporã, atravessou a serra dos Cristais, se
expandiu por todos os lados.
O planalto de Piratinga se transformou na mais
vibrante metrópole do sul do planeta. O berço de Bartira, generosamente, sem
destinção acolheu aqueles que a procuraram para melhor saber, melhor viver,
melhor expor suas qualificações ignoradas noutros cantos. São mais de dez
milhões de almas laboriosas.
A Bela Vista se tornou o Bexiga dos teatros, da
gastronoomia, dos menestréis e amigos da noite. Sede de Escolas de Samba, ponto
de malandros, palco da boemia moderna. A Avenida Paulista transformou-se no
coração financeiro do país, mandando para longe os industriais e os plantadores
de cana, soja, acuçar e o canal 05, do
deputado passou para as Organizações Vitor Costa e foi engolido pelas
Organizações Globo. O estádio do Pacaembu perdeu a charmosa concha acústica em
desuso e virou Paulo Machado de Carvalho. Já não é mais há longa data o maior.
As academias de ginásticas se espalharam pelas esquinas; os poucos carros do pós guerra, agora se
congestionam disputando espaço entre sete milhões que transitam diuturnamente
na cidade que não dorme. A chanchada cedeu lugar para o cinema novo e foi se atualizando. As salas de exibições, desde ha
tempos bem seletivas, se esconderam nos shoppíngs e tudo mudou. As novelas das
televisões invadiram os lares graciosamente e as raras salas de cinema que
ficaram nas avenidas, transformaram-se em igrejas ou faculdades.
Enfim, Lourenço desistiu do tenis e limitou-se a
jogar futebol. Sim, jogar futebol: O popular futebol de mesa, numa tentativa
menos cansativa para desenvolver o braço
curto. Mas não deu certo. E guarda com sabedoria a lição: Sua neta, que irá
nascer em breve, se tiver crises de choro, não arriscará seja a herdeira
injustiçada e será melhor observada, pois poderá seguindo o exemplo do avô, ter
um dos seus bracinhos quebrados por algum descuido ou travessuras ( bla, bla,
bla ... o resto todos já leram. )
Membro da
Academia Eldoradense de Letras
Membro da
Academia Itanhaense de Letras
Titular da
Cadeira nº 35 – Academia São José de Letras
Puxa, relembrei de tanta coisa! Sinal dos tempos que também já passei. Gostei!!!
ResponderExcluirMara M. de Andréa
Excelente !! Quantas lembranças!!
ResponderExcluir