18 agosto 2012

COISAS DO JUDICIÁRIO - (palhaçada institucionalizada )


"A pior audiência da minha vida"


A minha carreira de Promotor de
Justiça foi pautada sempre pelo princípio da importância (inventei agora esse
princípio), isto é, priorizava aquilo que realmente era significante diante da
quantidade de fatos graves que ocorriam na Comarca em que trabalhava. Até
porque eu era o único promotor da cidade e só havia um único juiz. Se nós
fôssemos nos preocupar com furto de galinha do vizinho; briga no botequim de
bêbado sem lesão grave e noivo que largou a noiva na porta da igreja nós não
iríamos dar conta de tudo de mais importante que havia para fazer e como havia
(crimes violentos, graves, como estupros, homicídios, roubos, etc).


Era simples. Não há outro meio de você
conseguir fazer justiça se você não priorizar aquilo que, efetivamente,
interessa à sociedade. Talvez esteja aí um dos males do Judiciário quando se
trata de “emperramento da máquina judiciária”. Pois bem. O Procurador Geral de
Justiça (Chefe do Ministério Público) da época me ligou e pediu para eu
colaborar com uma colega da comarca vizinha que estava enrolada com os
processos e audiências dela. Lá fui eu prestar solidariedade à colega. Cheguei,
me identifiquei a ela (não a conhecia) e combinamos que eu ficaria com os
processos criminais e ela faria as audiências e os processos cíveis. Foi quando
ela pediu para, naquele dia, eu fazer as audiências, aproveitando que já estava
ali. Tudo bem. Fui à sala de audiências e me sentei no lugar reservado aos
membros do Ministério Público: ao lado direito do juiz.


E eis que veio a primeira audiência do
dia: um crime de ato obsceno cuja lei diz:

Ato obsceno

Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao
público:

Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.


O detalhe era: qual foi o ato obsceno
que o cidadão praticou para estar ali, sentado no banco dos réus? Para que o
Estado movimentasse toda a sua estrutura burocrática para fazer valer a lei?
Para que todo aquele dinheiro gasto com ar condicionado, luz, papel, salário do
juiz, do promotor, do defensor, dos policiais que estão de plantão, dos
oficiais de justiça e demais funcionários justificasse aquela audiência? Ele,
literalmente, cometeu uma ventosidade intestinal em local público, ou em
palavras mais populares, soltou um pum, dentro de uma agência bancária e o
guarda de segurança que estava lá para tomar conta do patrimônio da empresa,
incomodado, deu voz de prisão em flagrante ao cliente peidão porque entendeu
que ele fez aquilo como for ma de deboche da figura do segurança, de sua
autoridade, ou seja, lá estava eu, assoberbado de trabalho na minha comarca,
trabalhando com o princípio inventado agora da importância, tendo que fazer
audiência por causa de um peidão e de um guarda que não tinha o que fazer. E
mais grave ainda: de uma promotora e um juiz que acharam que isso fosse algo
relevante que pudesse autorizar o Poder Judiciário a gastar rios de dinheiro
com um processo para que aquele peidão, quando muito mal educado, pudesse ser
punido nas “penas da lei”.


Ponderei com o juiz que aquilo não
seria um problema do Direito Penal, mas sim, quando muito, de saúde, de
educação, de urbanidade, enfim… Ponderei, ponderei, mas bom senso não se compra
na esquina, nem na padaria, não é mesmo? Não se aprende na faculdade. Ou você
tem, ou não tem. E nem o juiz, nem a promotora tinham ao permitir que um pum se
transfor masse num litígio a ser resolvido pelo Poder Judiciário.


Imagina se todo pum do mundo se
transformasse num processo? O cheiro dos fóruns seria insuportável.

O problema é que a audiência foi feita e eu tive que ficar ali ouvindo tudo
aquilo que, óbvio, passou a ser engraçado. Já que ali estava, eu iria me
divertir. Aprendi a me divertir com as coisas que não tem mais jeito. Aquela
era uma delas. Afinal o que não tem remédio, remediado está.

O réu era um homem simples, humilde, mas do tipo forte, do campo, mas com idade
avançada, aproximadamente, uns 70 anos.

Eis a audiência:


Juiz – Consta aqui da denúncia
oferecida pelo Ministério Público que o senhor no dia x, do mês e ano tal, a
tantas horas, no bairro h, dentro da agência bancária Y, o senhor, com vontade
livre e consciente de ultrajar o pudor público, praticou ventosidade
intestinal, dep ois de olhar para o guarda de forma debochada, causando odor
insuportável a todas as pessoas daquela agência bancária, fato, que, por si só,
impediu que pessoas pudessem ficar na fila, passando o senhor a ser o primeiro
da fila.

Esses fatos são verdadeiros?


Réu – Não entendi essa parte da
ventosidade…. o que mesmo?


Juiz – Ventosidade intestinal.


Réu – Ah sim, ventosidade intestinal.
Então, essa parte é que eu queria que o senhor me explicasse direitinho.


Juiz – Quem tem que me explicar aqui é
o senhor que é réu. Não eu. Eu cobro explicações. E então.. São verdadeiros ou
não os fatos?

O juiz se sentiu ameaçado em sua
autoridade. Como se o réu estivesse desafiando o juiz e mandando ele se
explicar. Não percebeu que, em verdade, o réu não estava entendendo nada do que
ele estava dizendo.

Réu – O guarda estava lá, eu estava na
agência, me lembro que ninguém mais ficou na fila, mas eu não roubei
ventosidade de ninguém não senhor. Eu sou um homem honesto e trabalhador,
doutor juiz “meretrício”.

Na altura da audiência eu já estava
rindo por dentro porque era claro e óbvio que o homem por ser um homem simples
ele não sabia o que era ventosidade intestinal e o juiz por pertencer a outra
camada da sociedade não entendia algo óbvio: para o povo o que ele chamava de
ventosidade intestinal aquele homem simples do povo chama de PEIDO. E
mais: o juiz
se ofendeu de ser chamado de meretrício. E continuou a audiência.

Juiz – Em primeiro lugar, eu não sou meretrício, mas sim meritíssimo. Em
segundo, ninguém está dizendo que o senhor roubou no banco, mas que soltou uma
ventosidade intestinal. O senhor está me entendendo?

Réu ¬– Ahh, agora sim. Entendi sim. Pensei que o senhor estivesse me chamando
de ladrão. Nunca roubei nada de ninguém. Sou trabalhador.

E puxou do bolso uma carteira de trabalho velha e amassada para fazer prova de
trabalho.

Juiz – E então, são verdadeiros ou não esses fatos.


Réu – Quais fatos?


O juiz nervoso como que perdendo a paciência e alterando a voz repetiu.


Juiz – Esses que eu acabei de narrar para o senhor. O senhor não está me
ouvindo?


Réu – To ouvindo sim, mas o senhor pode repetir, por favor. Eu não prestei bem
atenção.


O juiz, visivelmente irritado, repetiu a leitura da denúncia e insistiu na tal
da ventosidade intestinal, mas o réu não alcançava o que ele queria dizer.
Resolvi ajudar, embora não devesse, pois não fui eu quem ofereci aquela
denúncia estapafúrdia e descabida. Típica de quem não tinha o que fazer.


EU â “ Excelência, pela ordem. Permite uma observação?

O juiz educado, do tipo que soltou pipa no ventilador de casa e jogou bola de
gude no tapete persa do seu apartamento, permitiu, prontamente, minha
manifestação.


Juiz – Pois não, doutor promotor. Pode falar. À vontade.


Eu – É só para dizer para o réu que ventosidade intestinal é um peido. Ele não
esta entendendo o significado da palavra técnica daquilo que todos nós fazemos:
soltar um pum. É disso que a promotora que fez essa denúncia está acusando o
senhor.

O juiz ficou constrangido com minhas palavras diretas e objetivas, mas deu
aquele riso de canto de boca e reiterou o que eu disse e perguntou, de novo, ao
réu se tudo aquilo era verdade e eis que veio a confissão.


Réu – Ahhh, agora sim que eu entendi o que o senhor “meretrício” quer dizer.


O juiz o interrompeu e corri giu na hora.

Juiz – Meretrício não, meritíssimo.


Pensei comigo: o cara não sabe o que é um peido vai saber o que é um adjetivo
(meritíssimo)? Não dá. É muita falta de sensibilidade, mas vamos fazer a
audiência. Vamos ver onde isso vai parar. E continuou o juiz.


Juiz – Muito bem. Agora que o doutor Promotor já explicou para o senhor de que
o senhor é acusado o que o senhor tem para me dizer sobre esses fatos? São
verdadeiros ou não?

Juiz adora esse negócio de verdade real. Ele quer porque quer saber da verdade,
sei lá do que.


Réu – Ué, só porque eu soltei um pum o senhor quer me condenar? Vai dizer que o
meretrício nunca peidou? Que o Promotor nunca soltou um pum? Que a dona moça aí
do seu lado nunca peidou? (ele se referia a secretária do juiz que naquela
altura já estava peidando de tanto rir como todos os presentes à audiência).< br />

O juiz, constrangido, pediu a ele que o respeitasse e as pessoas que ali
estavam, mas ele insistiu em confessar seu crime.

Réu – Quando eu tentei entrar no banco o segurança pediu para eu abrir minha
bolsa quando a porta giratória travou, eu abri. A porta continuou travada e ele
pediu para eu levantar a minha blusa, eu levantei. A porta continuou travada.
Ele pediu para eu tirar os sapatos eu tirei, mas a porta continuou travada. Aí
ele pediu para eu tirar o cinto da calça, eu tirei, mas a porta não abriu. Por
último, ele pediu para eu tirar todos os metais que tinha no bolso e a porta
continuou não abrindo. O gerente veio e disse que ele podia abrir a porta, mas
que ele me revistasse. Eu não sou bandido. Protestei e eles disseram que eu só
entraria na agência se fosse revistado e aí eu fingi que deixaria só para poder
entrar. Quando ele veio botar a mão em cima de mim me revistando , passando a
mão pelo meu corpo, eu fiquei nervoso e, sem querer, soltei um pum na cara dele
e ele ficou possesso de raiva e me prendeu. Por isso que estou aqui, mas não
fiz de propósito e sim de nervoso. Passei mal com todo aquele constrangimento
das pessoas ficarem me olhando como seu eu fosse um bandido e eu não sou. Sou
um trabalhador. Peidão sim, mas trabalhador e honesto.


O réu prestou o depoimento
constrangido e emocionado e o juiz encerrou o interrogatório. Olhei para o
defensor público e percebi que o réu foi muito bem orientado. Tipo: “assume o
que fez e joga o peido no ventilador. Conta toda a verdade”. O juiz quis passar
a oitiva das testemunhas de acusação e eu alertei que estava satisfeito com a
prova produzida até então. Em outras palavras: eu não iria ficar ali sentado
ouvindo testemunhas falando sobre um cara peidão e um segurança maluco que não
tinha o que faze r junto com um gerente despreparado que gosta de constranger os
clientes e um juiz que gosta de ouvir sobre o peido alheio. Eu tinha mais o que
fazer. Aliás, eu estava até com vontade de soltar um pum, mas precisava ir ao
banheiro porque meu pum as vezes pesa e aí já viu, né?

No fundo eu já estava me solidarizando
com o pum do réu, tamanho foi o abuso do segurança e do gerente e pior: por
colocarem no banco dos réus um homem simples porque praticou uma ventosidade
intestinal.

É o cúmulo da falta do que fazer e da
burocracia forense, além da distorção do Direito Penal sendo usado como
instrumento de coação moral. Nunca imaginei fazer uma audiência por causa de
uma, como disse a denúncia, ventosidade intestinal. Até pum neste País está
sendo tratado como crime com tanto bandido, corrupto, ladrão andando pelas ruas
o judiciário parou para julgar um pum.


Resultado : pedi a absolvição do réu
alegando que o fato não era crime, sob pena de termos que ser todos,
processados, criminalmente, neste País, inclusive, o juiz que recebeu a
denúncia e a promotora que a fez. O juiz, constrangido, absolveu o réu, mas
ainda quis fazer discurso chamando a atenção dele, dizendo que não fazia aquilo
em público, ou seja, ele é o único ser humano que está nas ruas e quando quer
peidar vai em casa rápido, peida e volta para audiência, por exemplo.

É um cara politicamente correto. É o tipo do peidão covarde, ou seja, o que tem
medo de peidar. Só peida no banheiro e se não tem banheiro ele se contorce,
engole o peido, cruza as perninhas e continua a fazer o que estava fazendo como
se nada tivesse acontecido. Afinal, juiz é juiz.


Moral da história: perdemos 3 horas do
dia com um processo por causa de um peido. Se contar isso na Inglaterra, com
certeza, a Rainha jamais irá acreditar porque ela também, mesmo sendo Rainha…
Você sabe.

 ( escrito pelo Desembargador Paulo Rangel:
Rio de Janeiro, 10 de maio de 2012. )

Colaboração de Celina Mascarenhas, de São Paulo.



 

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