O
Juizado de Paz.
O Expresso Vida transcreve elucidativo artigo sobre as
funções e carreira do Juiz de Paz.
“
Juiz de paz: magistrado ou político?
O Supremo Tribunal Federal, ao
impor a necessidade de filiação partidária aos juízes de paz, ameaça esvaziar
essa figura, além de contradizer sua própria orientação de lhes aplicar as
vedações típicas da magistratura.
Desde a primeira Constituição do
Brasil, há a previsão da justiça de paz. Conforme nos informa Wilson Carlos
Rodycz, o juiz de paz desempenhou um importante papel na administração da
justiça durante o período imperial.[i] Contudo, desde a proclamação da
República, a figura do juiz de paz foi perdendo importância, até o ponto de ter
se tornado inexpressiva nos dias atuais, embora a Constituição vigente lhe
reserve previsão específica.
A Constituição imperial de 1824
previa que juízes paz, eleitos da mesma forma dos vereadores, conduzissem
conciliações prévias aos processos judiciais (arts. 161 e 162). As
constituições de 1934 e 1937 também previam a possibilidade de criação, pelos
estados, de Justiça de Paz eletiva, com atribuições a serem estabelecidas em
lei, resguardada a possibilidade de recurso aos juízes togados (arts. 104, § 4º
e 104, respectivamente). As constituições de 1946 e 1967 falavam em Justiça de
Paz temporária, em vez de eletiva, e definiam como atribuições dela a
substituição judiciária – exceto para julgamentos finais e irrecorríveis – e a
habilitação e celebração de casamentos, além de outras atribuições conferidas
por lei.
A Constituição Federal de 1988,
em seu art. 98, II, determina que os estados criem, em sua jurisdição, uma
justiça de paz, com a finalidade de celebrar casamentos, verificar, de ofício
ou em face de impugnação apresentada, o processo de habilitação e exercer
atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas
na legislação. No Distrito Federal e nos Territórios a incumbência de criar a
justiça de paz compete à União. Segundo aquele mesmo dispositivo, a justiça de
paz deve ser remunerada e composta de cidadãos eleitos pelo voto direto,
universal e secreto, com mandato de quatro anos, e, conforme o art. 14, § 3º,
VI, c, com idade mínima de 21 anos.
Promulgada sob a égide da
Constituição de 1967, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar
Federal nº 35/1979), em seus arts. 112 e 113, dispõe sobre a Justiça de Paz,
restringindo sua competência à habilitação e celebração de casamentos.[ii] A
Lei Complementar nº 35 prevê que o Juiz de Paz deve ser nomeado pelo
Governador, mediante escolha em lista tríplice, organizada pelo Presidente do
Tribunal de Justiça, ouvido o Juiz de Direito da Comarca, e composta de
eleitores residentes no Distrito, não pertencentes a órgão de direção ou de
ação de Partido Político. Os demais nomes constantes da lista tríplice devem
ser nomeados primeiro e segundo suplentes (art. 112, § 1º). Embora essa forma
de nomeação não tenha sido recepcionada pela Constituição de 1988, ela vem
sendo praticada até os dias atuais, pois nenhum estado federado brasileiro
conseguiu concretizar as determinações constitucionais sobre a matéria.
O Estado de Minas Gerais foi o
primeiro a normatizar a figura do juiz de paz, por meio da Lei Estadual-MG nº
13.454/2000, que, não obstante, teve algumas de suas partes julgadas
inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF).[iii] A Lei Estadual-MG
nº 13.454 estabelecia as seguintes atribuições à justiça de paz mineira:
1.Presidir a celebração de
casamento civil, observadas as normas legais;
2.Examinar, de ofício ou em face
de impugnação apresentada, o processo de habilitação para o casamento, para
verificar a sua regularidade;
3.Opor impedimento à celebração
do casamento, nos termos do inciso II do art. 189 do Código Civil;
4.Exercer atribuições
conciliatórias, sem caráter jurisdicional, lavrando ou mandando lavrar o termo
da conciliação concluída;
5.Comunicar ao Juiz de Direito a
existência de menor em situação irregular;
6.Expedir atestado de residência,
de vida, de viuvez ou de miserabilidade de moradores de seu distrito, mediante
requerimento do interessado ou requisição de autoridade pública;
7.Arrecadar bens de ausentes ou
vagos, até que intervenha a autoridade competente;
8.Processar auto de corpo de
delito, de ofício ou a requerimento da parte, e lavrar auto de prisão, em caso
de ausência, omissão ou recusa da autoridade policial;
9.Prestar assistência ao
empregado nas rescisões de contrato de trabalho, quando inexistirem na
localidade os órgãos previstos no art. 477 da Consolidação das Leis do
Trabalho;
10.Zelar, na área territorial de
sua jurisdição, pela observância das normas concernentes à defesa do meio
ambiente e à vigilância ecológica sobre matas, rios e fontes, tomando as
providências necessárias ao seu cumprimento;
11.Intermediar acordo para
solução de pequenas demandas e ocorrências corriqueiras de trânsito; e
12.Funcionar como perito em
processos e exercer outras atividades judiciárias não defesas em lei, de comum
acordo com o Juiz de Direito da comarca.
O STF entendeu que as atribuições
de processar auto de corpo de delito, de lavrar auto de prisão em flagrante e
de prestar assistência ao empregado nas rescisões de contrato de trabalho são
inconstitucionais, por invadirem esfera de competência legislativa da União.
Ademais disso, o STF entendeu as
normas eleitorais federais são cogentes no tocante às eleições para juiz de
paz, isto é, não podem ser contrariadas por normas estaduais específicas.
Assim, a filiação partidária dos candidatos a juiz de paz seria obrigatória, do
mesmo modo como ocorre com os candidatos aos outros cargos eletivos.
Em outro julgado, o STF entendeu
que os juízes de paz devem receber remuneração fixa, sendo-lhes vedada a
percepção de emolumentos e custas decorrentes de suas atividades, tal qual
ocorre com os magistrados e contrariamente ao que acontece com os tabeliães
notários.[iv]
Em 27 de maio de 2008, o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação nº 16, para que os tribunais de
justiça estaduais e do DF encaminhassem às respectivas assembleias legislativas
(Câmara Legislativa, no caso do DF) propostas de lei tratando:
1.Das eleições para a função de
juiz de paz, na capital e no interior;
2.Da remuneração para a função de
juiz de paz, na capital e no interior;
3.Da atuação dos juízes de paz
perante as Varas de Família;
4.Da atuação dos juízes de paz na
atividade conciliatória.
Durante as eleições municipais de
2012, o Estado do Amapá - que, seguindo a orientação do CNJ, regulamentou a sua
Justiça de Paz por meio da Lei Estadual-AP nº 1.369/2009 - tentou realizar
eleições para juiz de paz, mas estas foram suspensas pelo Tribunal Regional
Eleitoral na última hora. Estima-se que o Distrito Federal realizará tais
eleições em 2016.
Com base no art. 14, § 3º, III,
da Constituição Federal, o STF entendeu que é condição de elegibilidade do juiz
de paz a filiação partidária (ADI 2.938). Todavia, tal entendimento colide com
outra orientação da Corte segundo a qual seriam aplicáveis aos juízes de paz as
vedações da magistratura previstas no art. 95, parágrafo único, do Texto
Constitucional. Como já mencionado, o STF julgou inconstitucional lei mineira
que destinou aos juízes de paz os valores recolhidos pelos emolumentos
decorrentes de seus serviços. Naquele caso, o Tribunal aplicou aos juízes de
paz a vedação relativa à magistratura no tocante ao recebimento, a qualquer
título ou pretexto, de custas ou participação em processo (CF, art. 95, par.
ún., II).
Ocorre que o art. 95, par. ún.,
III, da CF veda aos juízes a dedicação à atividade político-partidária.
Portanto, se são aplicáveis aos juízes de paz as vedações impostas aos
magistrados, de modo geral, a filiação partidária não apenas não pode ser
exigida como deve ser proibida. E esse parece ser o intuito do constituinte,
pois o juiz de paz não é um político; é um agente público que, vinculado ao
Poder Judiciário, tem por objetivo a pacificação social e a aplicação da lei.
Assim, parece mais adequado que, em vez da filiação partidária, devem-se exigir
dos candidatos ao cargo de juiz de paz os mesmos requisitos exigidos dos
candidatos à magistratura, isto é, o bacharelado em direito e a comprovação de
três anos de atividade jurídica (art. 93, I, da CF, com a redação dada pela
Emenda Constitucional nº 45/2004).
Com a decisão do STF de exigir
filiação partidária dos candidatos a juiz de paz, desvirtuou-se completamente a
nova justiça paz prevista pelo legislador constituinte, o que, certamente, fará
com que ela já nasça desacreditada, pois seus membros serão políticos de
carreira, sem formação jurídica. Como uma pessoa sem formação em direito poderá
analisar impugnações ou opor impedimento em processos de habilitação de
casamento? Como não se exigir conhecimento jurídico daquele que vai celebrar
conciliações e promover arrecadação de bens de ausentes? Como esperar
imparcialidade de pessoas sujeitas aos interesses de suas agremiações e a
lealdades político-ideológicas?
É uma lástima que se permita que
a atividade judicial seja desempenhada por pessoas sem formação jurídica
alguma, ainda mais com a sua imparcialidade comprometida pela filiação
partidária. O juiz de paz, tal como estabelecido na Constituição, não foi
concebido para ser um político, mas, sim, um magistrado democraticamente
nomeado, o que é bem diferente. Contudo, essa nuance escapou ao Supremo
Tribunal Federal, o que é compreensível num país em que a experiência de
participação política efetiva é tão tênue e escassa. De todo modo, melhor seria
que a Corte revisse sua posição antes que se realizassem as primeiras eleições
para juiz de paz, proibindo a filiação partidária e impondo a exigência de
formação em direito e três anos de prática jurídica. Com isso, além de conferir
coerência aos seus julgados, o Supremo Tribunal Federal fortaleceria a Justiça
de Paz e evitaria seu provável ocaso.
Notas
[i] O Juiz de Paz Imperial: uma
experiência de magistratura leiga e eletiva no Brasil. Dissertação de Mestrado
em Direito da UNISINOS, apresentada em 2002.
[ii] No art. 113, a lei dispõe
que a impugnação à regularidade do processo de habilitação matrimonial e a
contestação a impedimento oposto serão decididas pelo Juiz de Direito.
[iii] ADI 2.938/MG, Pleno, rel.
min. Eros Grau, DJ 9.12.2005.
[iv] ADI 954/MG, Pleno, rel. min.
Gilmar Mendes, 26.5.2011. “
O Expresso Vida sugere aos leitores que reflitam
sobre a interpretação do STF em relação
a norma constitucional que norteia o exercício da função e carreira do Juíz de
Paz.
Roberto J. Pugliese
presidente da Comissão de Direito
Notarial e Registros Públicos –OAB-Sc
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