O Expresso Vida recomenda a leitura do
artigo abaixo.
Direito
& literatura: a utilidade da prática literária na atividade profissional do
advogado
( autor Luís Carlos Martins Alves Jr . Publicado
em 11/2013. Elaborado em 10/2013. Jus Navegandi )
La postulacion de los hechos se
procesa a través de uma muy compleja polifonia narrativa de
versiones-diversiones em pugna. No es solo que existan versiones contrapuestas;
puede suceder también, y no es infrecuente, que alguna version abra una trama
diversificada a partir de un detalle de la principal, o simplemente diversa
como diferente de la sostenida por otra de las partes. (José Calvo
Gonzalez) [1]
Senhoras e senhores,
1.Na minha primeira semana de
aula no Curso de Direito da Universidade Federal do Piauí, o professor Amaury
Teixeira Nunes, regente da disciplina Introdução ao Estudo do Direito, falou
para nós, seus alunos, a seguinte e marcante assertiva:
o advogado é o profissional da
palavra; dominem a palavra que vocês dominarão o Direito.
2. Ainda estudante, no primeiro
dia de estágio no escritório de advocacia do dr. Francisco de Sales e Silva
Palha Dias, ele me entregou os “meus primeiros autos de um processo”, disse-me
para ler de “capa a capa”, entender o que estava ali dentro, descobrir quais
eram os problemas e apontar as soluções em uma petição.
3. Indaguei o que realmente
significava uma petição. No que obtive a seguinte resposta:
Uma petição é uma historinha
convincente e bem contada que o advogado escreve para o juiz.
4. De lá para cá, tenho
vivenciado que o mundo jurídico é composto pelo universo das palavras, das
histórias e estórias, das narrativas, das versões, e da literatura normativa e
argumentativa.
5. Pois bem, nesta breve
intervenção pretendo destacar a utilidade da Literatura na prática do Direito,
especialmente na do Advogado na confecção de peças processuais: petições,
memoriais, pareceres, manifestações e postulações jurídicas.
6. Com efeito, nada obstante seja
o Direito um tipo de Literatura, é preciso distinguir essas duas modalidades
literárias.
7. A Literatura “literária” deve
ser voltada para a liberdade criativa, de caráter estético, sem compromissos
que não sejam aqueles do próprio criador do texto literário.
8. O texto literário nasce da
criatividade e da necessidade do autor. O autor ou criador literário é livre
para escrever do modo e do jeito (estilo) que melhor lhe aprouver ou segundo os
seus próprios interesses e conveniências. O criador literário é soberano, é
divino.
9. Já o Direito é um tipo de
Literatura voltado para a regulação das condutas e comportamentos humanos. É
uma Literatura “normativa” ou “prescritiva”. Não visa o “estético”, o “belo” ou
o “prazeroso” aos sentidos, mas o “lícito” ou o “ilícito”, segundo os seus
próprios critérios, em conformidade com as forças ou ideologias predominantes
em determinada coletividade e em determinado momento histórico.
10. A literatura normativa tem
como finalidade prescrever quais condutas e comportamentos são “proibidos”,
“obrigatórios” ou “facultativos”, atribuindo-lhes as consequências normativas
de “validade” ou de “invalidade”, bem como os respectivos “prêmios” ou
“castigos”.
11. A “estética” do Direito
consiste em criar preceitos normativos que serão obedecidos. Preferencialmente,
que esses preceitos sejam considerados “justos” e “legítimos”.
12. Quanto maior for a “justiça”
e a “legitimidade” do Direito, mais belo e prazeroso ele terá condições de ser,
e maior será o grau de livre adesão e de fiel obediência a ele.
13. A “estética jurídica” é
distinta da “estética literária”.
14. Mas não irei cuidar das
Palavras das Leis nem das Palavras das Sentenças, que são textos de uma
Literatura normativa (ou prescritiva), que devem ser obedecidos, sob pena de
uma sanção ou reprimenda.
15. Nesta intervenção falarei das
Palavras dos Advogados contidas nas suas “peças”, que também são textos
literários, mas não de caráter normativo-prescritivo, mas de caráter
persuasivo.[2]
16. O advogado escreve para
persuadir. Essa é uma arte que exige apurada técnica. A arte de convencer o
outro a livremente concordar com os seus fundamentos normativos e argumentos
jurídicos.
17. Se o “artista literário”
domina a palavra para agir com absoluta liberdade, o “artista da advocacia”
deve dominar a palavra para defender os interesses jurídicos dos seus
constituintes.
18. Se o texto “literário” é de
soberana criação do seu autor, de acordo com as suas conveniências, caprichos,
possibilidades e necessidades, o texto “advocatício” não é um “capricho” do
autor, mas uma necessidade e que deve ter utilidade para o seu
cliente/constituinte.
19. Esse é um dogma
inquestionável: a peça advocatícia deve ser útil para os interesses que
defende. O advogado não deve revelar erudição “balofa” nas suas peças, mas
erudição “útil”.
20. Isso porque, insista-se, o
advogado escreve para e por outro. O literato pode escrever para e por si. O
advogado não tem esse direito de escrever para e por si, mas para outro (o
juiz) e por outro (o constituinte/cliente).
21. Mas a qual a diferença entre
a literatura do advogado e a literatura do magistrado ou a do legislador normativo?
22. O texto legislativo não
necessita de convencer às pessoas ou os seus destinatários. Ele deve ser
obedecido.
23. Da mesma maneira sucede com o
texto judicial, em grau até mais forte que o próprio texto legislativo, pois a
sentença é a concretização específica de um mandamento legal abstrato e
hipotético. A sentença deve ser cumprida, sob pena de “castigos” ou “punições”.
24. Diferentemente ocorre com o
texto advocatício, que não tem força normativa, que não prescreve condutas nem
comina sanções, mas que deve convencer, que deve obter a livre adesão e
concordância de seu leitor, e não a sua obediência.
25. Toda Lei, bem como toda
Sentença, deve ser lida por todos, mas nem toda peça Advocatícia deve ser lida
e conhecida por todos.
26. Com efeito, ninguém é
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa em virtude de uma “peça
advocatícia”, mas somos obrigados a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa em
virtude das Leis e das Sentenças.
27. Nessa perspectiva, como
a Literatura “literária” pode ajudar à Literatura “advocatícia”? Qual a
utilidade da Literatura “literária” para o advogado na confecção de suas peças?
28. A principal utilidade da
Literatura “literária” consiste em desenvolver as habilidades da leitura, da
compreensão e da interpretação dos textos e das circunstâncias fáticas, dos
valores socialmente compartilhados e das “almas” dos indivíduos envolvidos em
um processo.
29. Quanto maior for a quantidade
de textos literários lidos e melhor a qualidade desses textos, maior será a
capacidade de leitura e melhor a qualidade das compreensões e interpretações
que forçosamente ocorrerá. É uma consequência natural.
30. A outra habilidade
indispensável para o sucesso profissional do advogado é a capacidade de bem
escrever. Aprendi com o meu pai, desde as minhas primeiras letras e luzes, que
somente escreve bem quem lê bem. Somente sabe escrever quem souber ler. Quanto
melhor o leitor, melhor será o escritor. Dificilmente um bom escritor é um mal
leitor. A rigor, todo bom escritor é um excelente leitor.
31. Evandro Lins e Silva[3],
que foi um grande magistrado e um excepcional advogado criminalista, defendia
apaixonadamente a necessidade de o advogado ler de tudo, ler mais do que textos
jurídicos, ler poesias, romances, contos, viajar na imaginação, para poder ir
além do Direito e para poder encontrar soluções além daquelas facilmente
percebidas.
32. Tenha-se que o advogado é um
postulador, um suplicante, um profissional que deve utilizar de seu talento
para convencer o outro. Independentemente de quem seja esse outro, ou de qual
instância seja o juiz.
33. Nem sempre ele consegue a
adesão do leitor, mas o seu compromisso há de ser com os interesses que
representa, com os direitos do seu cliente.
34. Para alcançar esse
objetivo, o advogado deve mirar no cérebro e no coração do leitor (magistrado).
Ele deve equilibrar a razão e a emoção na defesa de seu cliente. O
advogado deve ser um frio apaixonado.
35. Para que ele tenha essa
paradoxal habilidade, ele deverá possuir a ciência do conhecimento e da leitura;
a experiência da vida e dos sacrifícios; a consciência da missão ética de suas
atividades; e, quem sabe, a inconsciência de suas escolhas e visões.
36. Mas afinal, como a literatura
pode ser útil para o advogado? Desenvolvendo o bom gosto, a criatividade, a
capacidade de compreender a realidade, de ler os textos, de escrever as
postulações e de convencer.
37. Pois para convencer é preciso
saber. E para saber é preciso estudar. E para estudar e conhecer é preciso ler,
ler muito. Ensinava o prof. José Alfredo Baracho: “só sabe quem lê”.
38. Não há conhecimento útil nem
sabedoria prática sem muito estudo, sem dedicação e sem esforço. Não há
aprendizagem sem mérito.
39. Finalizo recordando a
seguinte passagem de ouro da literatura advocatícia.
40. Cuida-se da argumentação do
insuperável advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto[4] na defesa de
Harry Berger, preso político durante os tenebrosos dias do “Estado Novo”.
41. Naqueles tempos
dramáticos, de situação ameaçadora, os presos políticos do regime autoritário
varguista estavam sendo vítimas de maus-tratos físicos e psicológicos, estavam
sendo vilipendiados, brutalizados, tratados sem respeito e sem consideração, ou
seja com a dignidade humana garroteada.
42. Naqueles tempos sombrios e
para aquelas pessoas, as leis não protegiam nem socorriam os homens.[5]
43. Somente advogados combativos
e intimoratos ousavam desafiar o arbítrio do Poder e a irracionalidade da Força
para defender os inimigos do sistema.
44. Eis o que postulou Sobral
Pinto, um grande advogado e um monumental brasileiro, um homem incorruptível,
que nunca se furtou em suas responsabilidades profissionais ou cívicas:
Tanto mais obrigatoriamente
inadiável se torna a intervenção urgentíssima de V. Exa., Sr. Juiz, quanto
somos um povo que não tolera a crueldade, nem mesmo para com os
irracionais, como o demonstra o decreto n. 24.645, de 10 de julho de 1934, cujo
artigo 1º dispõe: ‘Todos os animais existentes no país são tutelados do
Estado’.
Para tornar eficiente tal tutela,
esse mesmo decreto estatui: ‘Aquele que, em lugar público ou privado, aplicar
ou fizer aplicar maus tratos aos animais, incorrerá em multa de 20$000 a
500$000 e na pena de prisão celular de 2 a 10 dias, quer o delinquente seja ou
não o respectivo proprietário, sem prejuízo da ação civil que possa caber”
(art. 2º).
E, para que ninguém possa invocar
o benefício da ignorância nesta matéria, o art. 3º do decreto supra mencionado
define: ‘Consideram-se maus tratos: ...: II – manter animais em lugares
anti-higienicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou
os privem de ar ou luz’.
Baseado nesta legislação um dos
juízes de Curitiba, Estado do Paraná, dr. Antonio Leopoldo dos Santos, condenou
João Maneur Karen à pena de 17 dias de prisão celular, e à multa de 20$000, por
ter morto a pancada um cavalo de sua propriedade.
Ora, num país que se rege por tal
legislação, que os Magistrados timbram em aplicar, para, deste modo, resguardarem
os próprios animais irracionais dos maus tratos até dos seus donos, não é
possível que Harry Berger permaneça, como até agora, meses e meses a fio, com a
anuência do Tribunal de Segurança Nacional, dentro de um socavão de escada,
privado de ar, de luz, e de espaço, envolto, além do mais, em andrajos, que
pela imundície, os próprios mendigos recusariam a vestir
....
Impõe-se, assim, que, sem mais a
delonga de um minuto, V. Exa. ordene, com a sua autoridade de magistrado, que
Harry Berger seja transferido, imediatamente, para uma cela condigna, onde, a
par de cama, roupa, vestuário, e objetos próprios para escrever, - de que está
carecendo para a sua defesa -, se lhe permita fazer as leituras que bem lhe
aprouver, tudo, porém dentro das normas da vigilância prudente, que a
administração carcerária costuma, em face dos detentos políticos, por em
prática, para evitar confabulações perigosas dos encarcerados com os seus
partidários políticos ainda em liberdade.
Formulando o presente
requerimento tem o Suplicante cumprido apenas o seu dever, oferecendo,
entretanto, com isso, a V. Exa. a adequada oportunidade para que, sob os
ditames imperiosos da sua consciência de homem e de Magistrado, possa V. Exa.
cumprir o seu, com igual solicitude.’
45. O juiz restou
convencido, acolheu a postulação do advogado. A integridade física do preso
político foi salva. Bem como a sua vida.
46. Outros eram aqueles
tempos. Outros eram aqueles homens!
Obrigado pela atenção!
Notas
[1] La
verdad de La verdad judicial: construcción y régimen narrativo. Texto extraído
da página pessoal do autor:
http://webpersonal.uma.es/~JCALVO/docs/verdadjudicial.pdf
[2]
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica. Tradução de Virgínia K. Pupi. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
[3] A defesa
tem a palavra. 1980, p. 20.
[4] Por que
defendo os comunistas? Belo Horizonte, Editora Comunicação: 1979.
[5] Há uma
excelente Dissertação de Mestrado sobre essa defesa de Sobral Pinto. Autor:
Daniel Monteiro Neves. Título: Como se defende um comunista: uma análise
retórico-discursiva da defesa judicial de Harry Berger por Sobral Pinto.
Universidade Federal de São João Del-Rei. Programa de Mestrado em Letras. São
João Del-Rei/MG, 2013.
O Expresso Vida parabeniza o
autor do texto. Recomenda a leitura.
Roberto J. Pugliese
www.pugliesegomes.com.brpresidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos –OAB-Sc
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