Memória nº 54
Paranã. Ex-quilombo no fim do Tocantins.
Fora contratado por um
advogado cuja fazenda nas imediações de Paranã, no Tocantins, antigo quilombo,
estava invadida. Região longe de tudo e de todos, praticamente terra de
ninguém. Lugar esquecido e perdido, distante do eixo da Rodovia Federal, da
fronteira de Goiás, dos confins baianos e de qualquer lugar civilizado. Na
época, um extenso município desabitado, com menos de dez mil almas espalhadas
pelas ondulações do cerrado, residindo uns em casa de adobe nas fazendas que
estavam sendo abertas, outros em casas de taipa, de reboco encardido, no
modesto sítio urbano.
Sua missão seria limpar o
imóvel do colega de São Paulo dos invasores que se instalaram por lá sob ordem de outro fazendeiro residente em
Araçatuba.
Corria o ano de 1991 e
Lourenço era presidente da OAB, muito conhecido e bem conceituado em todo o
Estado, notadamente nos meios jurídicos e junto com seu aluno e estagiário
Sérgio do Valle, seguiram de carro para pleitear a reintegração de posse da
área ocupada por jagunços.
Levaram a peça pronta para
facilitar. Àquele tempo computador era artefato raro, motivo que carregaram a
velha Olivetti portatil amarelinha, que o Lourenço Pai lhe presenteara.
Partiram de Gurupi cedo e
chegaram ao final da tarde de uma segunda feira bem ensolarada. Viagem pitoresca
em direção ao oeste da Bahia. Mais de 300 km numa estrada estadual sem
pavimentação, sinalização, placas indicativas de direção, postos de serviços, policiamento
e restaurantes, salvo nas raras cidades do trajeto. Mais parecida com um
caminho de tropeiros do que propriamente rodovia.
A estrada precária acompanha
fazendas perdidas e isoladas, a maioria ainda não implantada, sem nenhum
cenário de civilização ao longo do trajeto. De tempo em tempo uma pinguela de
madeira sobre ribeirão quase seco. O bioma natural de toda a região é o
cerrado, consistente na mata baixa, retorcida, pedriscos e a topografia plana
ondulada. Cenário bem diferente para quem, como Lourenço, nascera e vivera envolvido
no Planalto de Piratininga, na raiz da Serra do Mar, junto ao indescritível oceano,
a verdejante Mata Atlântica, a Baixada
Santista, o Lagamar de Cananéia, o Vale do Ribeira e lugares outros cujo
colorido rico, se distancia do marrom pálido, com pedras moídas e arbustos
toscos.
Nas proximidades de Paranã a
estrada termina a beira do rio que empresta o nome da cidade e, uma precária
balsa, amarrada a cabos de aços que se movimenta pela força da própria correnteza,
com margens espraiadas, é o meio único para travessia de automóveis até a
cidade, alguns quilômetros mais a frente.
Antes do porto precário para
o embarque de veículos, uns vinte ou trinta quilômetros, a rodovia passa ao
lado da área invadida, percebendo-se pela movimentação que alguns jagunços
armados estavam acampados.
Apenas dois hoteizinhos,
alguns bares espalhados pelo núcleo urbano, sem nenhuma das poucas ruas calçadas,
com casinhas pobrezinhas, carentes de
pintura, revelando o estado geral de abandono e esquecimento. Algumas igrejas
de variados credos e a beira do rio que passa ao largo, um trapiche com o ponto
chique da cidade. Não se recorda ter visto qualquer sobrado. Enfim, nesta
descrição, tudo parado, semi morto, calado, silencioso esperando o porvir.
Foram direto à Delegacia de
Polícia avisar que iriam pleitear força policial para poder cumprir o eventual
mandado, de modo a preparar o policial para requisitar força, sendo de plano
avisado que não dispunha e preferia aguardar a ordem judicial para se movimentar.
Disse que não tinha armas e que a cidade estava sem Magistrado e Promotor de Justiça.
Instalados na aparentemente melhor
pousada, ou pensão, ou hotelzinho cuidaram de fazer limpeza geral nos apartamentos que alugaram:
compraram vassouras, panos de chão, desinfetantes e mata mosquito e outros insetos...
e foram jantar à beira do Paranã, num bote-balsa-restaurante...
Na manhã seguinte,
decepcionados souberam que o Magistrado só estaria na cidade, de passagem, pela
tarde da quarta feira... o que obrigaria permanecerem mais tempo naquele
quilombo. Sem nada para fazer.
Um campanário com a dimensão
de um campo de futebol ou maior, designado por praça, onde soltos, alguns
cavalos pastavam livremente era o centro da cidade. Numa das extremidades, um
prédio modesto e decadente servia de sede da Prefeitura Municipal, de Camara
dos Vereadores e do Forum de Justiça, com uma única entrada estrategicamente
disposta para a indisfarçável vigilância do alcaide.
A única linha telefônica
servia a esses poderes públicos em comum, porém, só um único aparelho, sem
extensão, ficava à disposição de todos, instalado na sala do prefeito
municipal.
Não havia agencia bancária e somente
um posto de saúde, mais equipado, considerado pelos habitantes da região como
hospital...Na cidade residiam duas advogadas.
Nesse quadro passearam à pé e
conversaram com muitas pessoas naquela terça feira também ensolarada e entre
outras tantas verdades e mentiras souberam que o ex Juiz de Direito, Dr. Ilipidrando, ou algo
parecido, gostava muito de nadar e diariamente atravessava o Rio Paranã, cuja
largura excede visivelmente a duzentos metros. Disseram que um dos filhos do
escrivão, era convidado e tinha que aceitar, a acompanha-lo nessa travessia
diariamente, pois o magistrado não
gostava de praticar o esporte sozinho.
Na tarde da quarta feira
distribuíram a ação e o Juiz passante negou o pedido liminar, designando
audiência de justificação. Não adiantou rogar, pedir, chorar, mostrando a
dificuldade que teriam para citar o ex
adverso em Araçatuba há mais de 2.000 km de lá...
Concedeu, no entanto
permissão para que a citação por precatória se realizasse por telefone e pela
terceira vez, Lourenço se valeu do instituto jurídico processual.
No gabinete do Prefeito,
assistido pela secretária deste e de uma escrevente chefe do cartório da única
vara judicial da Comarca, ajudou a elaborar a ordem a ser ditada pelo telefone
e orientou a servidora a telefonar para a cidade paulista.
O escrivão receptor não
entendia a determinação. A ligação caia.
Era repetida e por varias vezes as tentativas interrompidas porque o Prefeito
pedia para usar o telefone...
A confusão era grande na sala
do Prefeito Municipal que, sem pudor, também tentava tomar conhecimento mais
detalhado dos fatos. Em Araçatuba, dada as repetidas ligações e interrupções,
questionamentos e explicações, o Magistrado competente para receber a
precatória foi ao telefone dialogar
diretamente com Lourenço.
O Juiz paulista parecia não
acreditar nas explicações que ouvia. Não conseguia entender que a comarca que
expedia a precatória era precária ao extremo...Pediu então que passasse um fax
ou então telex. Ficou perplexo ao saber que não havia agencia bancária na
cidade. Também não compreendeu como o advogado tinha seu registro na OAB sob nº
251, já que no Estado de São Paulo, eram mais de cem mil advogados.
A carta foi passada mesmo com
as desconfianças e toda dificuldade. Retornaram à Gurupi. O cliente não saldou
o debito contratado. Lourenço tentou um acordo. Fez propostas, mas o advogado
decidido no propósito de não pagar, não aceitou nenhuma forma de acerto dos
honorários. O contrato foi rescindido. Lourenço estava preparando a competente
ação para execução dos honorários devidos, quando o colega inadimplente,
subitamente, faleceu.
(...)
Roberto J. Pugliese
www.pugliesegomes.com.brPresidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos –OAB-Sc
Membro da Academia Eldoradense de Letras
Membro da Academia Itanhaense de Letras
Titular da Cadeira nº 35 – Academia São José de Letras
Autor de Terrenos de Marinha e seus Acrescidos, Letras Jurídicas
Autor de Direitos das Coisas, Leud
Sócio do Instituto dos Advogados de Santa Catarina
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