20 julho 2013

João Carriel - ( MEMÓRIAS Nº 16)


Memória 16
João Carriel –

 

Quem sai do centro velho de Cananéia em direção ao sul há um bairro tradicional no qual residem, na grande maioria, famílias de pescadores. São pessoas humildes que há época que Lourenço residiu na cidade, o bairro não dispunha de esgoto sanitário e nenhuma rua calçada.

Moravam também por lá famílias que foram expulsas de suas terras. Famílias deslocadas por autoridades públicas por estarem em áreas transformadas em parques estaduais ou por grandes proprietários que àquela época estavam comprando áreas rurais na região e expulsando posseiros tradicionais.

Eram ruas arborizadas, com  terrenos vagos e construções das mais variadas, prevalecendo as mais simples, de madeira, pertencentes a filhos da cidade e outros oriundos das ilhas e do continente, que nos últimos anos, expulsos  dos lugares de origem viam no bairro um local apropriado para recomeçarem as suas vidas.

Para atingir o Carijo partindo do centro, o trajeto era seguir por via urbanizada até a Colonia dos Pescadores onde praticamente acabava a cidade, pois dali em diante, após o quartel da Polícia Militar Ambiental, era uma estrada de terra batida, ladeada por um grande e frondoso manguezal.

Mais à frente uma ponte de madeira atravessava as cabeceiras do rio Olaria, lugar no qual muitos pescadores encalhavam seus pequenos barcos. Após a ponte a bifurcação: Seguindo em frente, para o Carijo de Dentro, havia a chácara de Dr. Fábio Roberto Sidow Pinheiro, Procurador de Justiça que àquela época ainda não havia se aposentado e residia em São Paulo.  Logo depois se aposentou e passou a residir até morrer recentemente.

À esquerda, iniciava a Estrada dos Argolões, um logradouro mais parecido com rua ou avenida, do que propriamente estrada, que atingia o ponto turístico, no qual havia argolas, cuja lenda dizia que nelas, Martim Afonso de Souza amarrara sua embarcação quando passou por lá.

Nessa estrada, havia o casarão do Dr. Paulo Cantão, médico de respeito, residente em São Paulo,freqüentador da cidade por ser um pescador amador de primeira ordem e que anos antes fora cliente de Lourenço. Dr. Boechart, cientista da USP morava mais à frente. E na esquina próximo à Mercearia do Elias de Moura estavam situadas as duas casas que eram de Lourenço, na qual numa delas residia.

Aquele descampado, um montoado de lixo e terra, era o lugar apropriado para urbanizá-la numa praça, aproveitando a confluência da Estrada dos Argolões e a rua que de lá seguia para o interior do bairro. A história da praça será contada oportunamente.

Ao lado da ponte havia um botequinho de João Marcelo, conhecido por João Carriel, ou ao contrário, um botequinho pertencente ao João Carriel, conhecido por João Marcelo.  Uma casinha simples de madeira onde se vendia pinga durante o dia e à noite, o pequeno bar se transformava numa decadente casa de tolerância. Talvez não fosse, mas mulheres suspeitas se reuniam em quantidade naquela bodega cheia de cupim e poeira.

O bar do João Carriel ou do João Marcelo era junto ao leito do Olaria, da estrada e do mangue. As autoridades públicas toleravam por ser de madeira.

Apenas um rancho de madeira.

João, Marcelo ou Carriel, era negro bem forte, não muito alto, de timbre firme em sua voz, filho da ilha, que morava atrás daquele  comercio com a mulher e inúmeros filhos. Muitas crianças. João Marcelo ou Carriel era um negro bem feio que fizera amizade com Lourenço. Eram quase visinhos e politicamente contra o prefeito e todo o esquema político existente à época na cidade, que girava em torno do Governo Paulo Maluf e da ARENA.

A chácara de Lourenço era seccionada pela Estrada dos Argolões. Na parte de baixo, à esquerda de quem da ponte seguia para os argolões após o Morro de São João, em declive, o limite era o manguezal. Lugar próprio para construção de garagem de barcos, desde que fosse feito o canal entre o rio Olaria e o terreno, distante aproximadamente 100 metros daquela ponte, em linha reta pelo manguezal.

Pois trocando conversa com o amigo, este se prontificou a fazê-lo. Em dois dias João Carriel abriu o canal da ponte até os limites do imóvel de Lourenço, onde pretendia ancorar sua lancha Flamingo de 17 pés. Sendo mangue e lama, só teria condições de navegabilidade com maré alta.

O empreendimento fora feito no muque. Joao e um dos seus filhos fizeram o serviço hercúleo, quase impossível para ser realizado no braço, por apenas um adulto e um adolescente. Carriel foi tão brilhante e mais célere que Lessesp. A obra porém resultou em notificação da Capitania dos Portos que fora avisada.

No entanto, a notificação apenas exigiu que Lourenço assinasse alguns papéis na Delegacia da Capitania situada em Iguape, cidade logo ao lado, o que foi feito e nada mais acontecu. Diferente do que poderia acontecer nos dias atuais, com a legislação ambiental e tuteladora de manguezais e outras áreas tuteladas, com milhares de autoridades zelando pelo meio ambiente.

A amizade celebrada entre João e Lourenço levou aquele contrata-lo quando foi notificado a desocupar uma área que há anos plantava e cuidava, situada numa área de conflito entre dois litigantes que se diziam proprietários.

O sítio Palmeiras, situado no bairro Rio Branco, há mais de 10 km da sua casa, no continente, após a vila do Itapitangui, era palco a muitos anos de disputa fundiária entre duas famílias. E uma delas, entendeu que João não poderia estar na área plantando e promoveu algum ato para formalizar seu despejo.

Lourenço recorda-se bem que era Julho,  férias forense, sem magistrado na comarca, apenas na sede da circunscrição, em Registro, a progressista capital do Vale do Ribeira.

Lourenço interpos embargos de terceiros e obteve do Juiz de Direito plantonista a ordem liminar manutenindo João no seu pequeno bananal.

No final do ano, foi designada audiência de instrução e julgamento, e no depoimento pessoal e oitiva das testemunhas foi dito que João fazia o percurso de ida e volta de bicicleta, entre o sítio e seu bar e que ele plantava, colhia, vendia... e ainda trabalhava no boteco. (...)

Tudo confirmado pelas testemunhas arroladas, até porque era verdade. No entanto, o Magistrado não acreditou. Houve entender que a parte embargada reivindicante tinha razão, porque o trajeto era inóspito e difícil para que um homem fizesse o que ele, João costumava fazer quase que diariamente.

A sentença injusta foi decretada. O Magistrado julgou improcedente os embargos de terceiros e João perdeu a posse de seu  bananal... Tres ou quatro anos após, no entanto, O Tribunal de Justiça reverteu a decisão proferida pelo Magistrado do litoral e concedeu a manutenção de posse ao João, que embargara como terceiro ao processo que as famílias disputavam o domínio das Palmeiras.

João no entanto desistimulado acabou abandonando o bananal, pois não se sentia seguro em investir na plantação, colocando seu esforço físico e pessoal e algum dinheiro. Passou a investir exclusivamente no botequim.

Envestiu a ponto de reformá-lo. Sem chamar atenção construiu com tijolo e cimento um novo botequim e quando concluiu derrubou toda a madeira do antigo rancho...

Lourenço e João Carriel mantiveram amizade duradoura. Recentemente já de barbas e cabelos brancos, mesmo forte, como sempre fora, a velhice o abateu e veio a falecer. Restaram lembranças de convivência distante, mas sempre próxima...

Roberto J. Pugliese

presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos –OAB-Sc
Membro da Academia Eldoradense de Letras
Membro da Academia Itanhaense de Letras
Titular da Cadeira nº 35 – Academia São José de Letras
Autor de Terrenos de Marinha e seus Acrescidos, Letras Jurídicas
Autor de Direitos das Coisas, Leud

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