Memória 16
João Carriel –
Quem sai do centro velho de Cananéia em direção ao sul há um
bairro tradicional no qual residem, na grande maioria, famílias de pescadores.
São pessoas humildes que há época que Lourenço residiu na cidade, o bairro não
dispunha de esgoto sanitário e nenhuma rua calçada.
Moravam também por lá famílias que foram expulsas de suas
terras. Famílias deslocadas por autoridades públicas por estarem em áreas
transformadas em parques estaduais ou por grandes proprietários que àquela
época estavam comprando áreas rurais na região e expulsando posseiros
tradicionais.
Eram ruas arborizadas, com
terrenos vagos e construções das mais variadas, prevalecendo as mais
simples, de madeira, pertencentes a filhos da cidade e outros oriundos das
ilhas e do continente, que nos últimos anos, expulsos dos lugares de origem viam no bairro um local
apropriado para recomeçarem as suas vidas.
Para atingir o Carijo partindo do centro, o trajeto era
seguir por via urbanizada até a Colonia dos Pescadores onde praticamente
acabava a cidade, pois dali em diante, após o quartel da Polícia Militar
Ambiental, era uma estrada de terra batida, ladeada por um grande e frondoso
manguezal.
Mais à frente uma ponte de madeira atravessava as cabeceiras
do rio Olaria, lugar no qual muitos pescadores encalhavam seus pequenos barcos.
Após a ponte a bifurcação: Seguindo em frente, para o Carijo de Dentro, havia a
chácara de Dr. Fábio Roberto Sidow Pinheiro, Procurador de Justiça que àquela
época ainda não havia se aposentado e residia em São Paulo. Logo depois se aposentou e passou a residir
até morrer recentemente.
À esquerda, iniciava a Estrada dos Argolões, um logradouro
mais parecido com rua ou avenida, do que propriamente estrada, que atingia o
ponto turístico, no qual havia argolas, cuja lenda dizia que nelas, Martim
Afonso de Souza amarrara sua embarcação quando passou por lá.
Nessa estrada, havia o casarão do Dr. Paulo Cantão, médico
de respeito, residente em São Paulo,freqüentador da cidade por ser um pescador
amador de primeira ordem e que anos antes fora cliente de Lourenço. Dr.
Boechart, cientista da USP morava mais à frente. E na esquina próximo à
Mercearia do Elias de Moura estavam situadas as duas casas que eram de Lourenço,
na qual numa delas residia.
Aquele descampado, um montoado de lixo e terra, era o lugar
apropriado para urbanizá-la numa praça, aproveitando a confluência da Estrada
dos Argolões e a rua que de lá seguia para o interior do bairro. A história da
praça será contada oportunamente.
Ao lado da ponte havia um botequinho de João Marcelo,
conhecido por João Carriel, ou ao contrário, um botequinho pertencente ao João
Carriel, conhecido por João Marcelo. Uma
casinha simples de madeira onde se vendia pinga durante o dia e à noite, o
pequeno bar se transformava numa decadente casa de tolerância. Talvez não
fosse, mas mulheres suspeitas se reuniam em quantidade naquela bodega cheia de
cupim e poeira.
O bar do João Carriel ou do João Marcelo era junto ao leito
do Olaria, da estrada e do mangue. As autoridades públicas toleravam por ser de
madeira.
Apenas um rancho de madeira.
João, Marcelo ou Carriel, era negro bem forte, não muito
alto, de timbre firme em sua voz, filho da ilha, que morava atrás daquele comercio com a mulher e inúmeros filhos.
Muitas crianças. João Marcelo ou Carriel era um negro bem feio que fizera
amizade com Lourenço. Eram quase visinhos e politicamente contra o prefeito e
todo o esquema político existente à época na cidade, que girava em torno do
Governo Paulo Maluf e da ARENA.
A chácara de Lourenço era seccionada pela Estrada dos
Argolões. Na parte de baixo, à esquerda de quem da ponte seguia para os
argolões após o Morro de São João, em declive, o limite era o manguezal. Lugar
próprio para construção de garagem de barcos, desde que fosse feito o canal
entre o rio Olaria e o terreno, distante aproximadamente 100 metros daquela
ponte, em linha reta pelo manguezal.
Pois trocando conversa com o amigo, este se prontificou a
fazê-lo. Em dois dias João Carriel abriu o canal da ponte até os limites do
imóvel de Lourenço, onde pretendia ancorar sua lancha Flamingo de 17 pés. Sendo
mangue e lama, só teria condições de navegabilidade com maré alta.
O empreendimento fora feito no muque. Joao e um dos seus
filhos fizeram o serviço hercúleo, quase impossível para ser realizado no
braço, por apenas um adulto e um adolescente. Carriel foi tão brilhante e mais
célere que Lessesp. A obra porém resultou em notificação da Capitania dos
Portos que fora avisada.
No entanto, a notificação apenas exigiu que Lourenço
assinasse alguns papéis na Delegacia da Capitania situada em Iguape, cidade
logo ao lado, o que foi feito e nada mais acontecu. Diferente do que poderia
acontecer nos dias atuais, com a legislação ambiental e tuteladora de
manguezais e outras áreas tuteladas, com milhares de autoridades zelando pelo
meio ambiente.
A amizade celebrada entre João e Lourenço levou aquele
contrata-lo quando foi notificado a desocupar uma área que há anos plantava e
cuidava, situada numa área de conflito entre dois litigantes que se diziam
proprietários.
O sítio Palmeiras, situado no bairro Rio Branco, há mais de
10 km da sua casa, no continente, após a vila do Itapitangui, era palco a
muitos anos de disputa fundiária entre duas famílias. E uma delas, entendeu que
João não poderia estar na área plantando e promoveu algum ato para formalizar
seu despejo.
Lourenço recorda-se bem que era Julho, férias forense, sem magistrado na comarca,
apenas na sede da circunscrição, em Registro, a progressista capital do Vale do
Ribeira.
Lourenço interpos embargos de terceiros e obteve do Juiz de
Direito plantonista a ordem liminar manutenindo João no seu pequeno bananal.
No final do ano, foi designada audiência de instrução e
julgamento, e no depoimento pessoal e oitiva das testemunhas foi dito que João
fazia o percurso de ida e volta de bicicleta, entre o sítio e seu bar e que ele
plantava, colhia, vendia... e ainda trabalhava no boteco. (...)
Tudo confirmado pelas testemunhas arroladas, até porque era
verdade. No entanto, o Magistrado não acreditou. Houve entender que a parte
embargada reivindicante tinha razão, porque o trajeto era inóspito e difícil
para que um homem fizesse o que ele, João costumava fazer quase que
diariamente.
A sentença injusta foi decretada. O Magistrado julgou
improcedente os embargos de terceiros e João perdeu a posse de seu bananal... Tres ou quatro anos após, no
entanto, O Tribunal de Justiça reverteu a decisão proferida pelo Magistrado do
litoral e concedeu a manutenção de posse ao João, que embargara como terceiro
ao processo que as famílias disputavam o domínio das Palmeiras.
João no entanto desistimulado acabou abandonando o bananal,
pois não se sentia seguro em investir na plantação, colocando seu esforço
físico e pessoal e algum dinheiro. Passou a investir exclusivamente no
botequim.
Envestiu a ponto de reformá-lo. Sem chamar atenção construiu
com tijolo e cimento um novo botequim e quando concluiu derrubou toda a madeira
do antigo rancho...
Lourenço e João Carriel mantiveram amizade duradoura.
Recentemente já de barbas e cabelos brancos, mesmo forte, como sempre fora, a
velhice o abateu e veio a falecer. Restaram lembranças de convivência distante,
mas sempre próxima...
Roberto J. Pugliese
presidente da Comissão de Direito
Notarial e Registros Públicos –OAB-Sc
Membro da Academia Eldoradense de LetrasMembro da Academia Itanhaense de Letras
Titular da Cadeira nº 35 – Academia São José de Letras
Autor de Terrenos de Marinha e seus Acrescidos, Letras Jurídicas
Autor de Direitos das Coisas, Leud
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