Memória 12
Henrique Libereck – Rio Itanhaém
O velho marinheiro teve
importância impar na vida de Lourenço, dando lição de vida, noticiando fatos,
mexendo com sua imaginação, ministrando ensinamentos e oportunizando
aprimoramento em gostos e interesses que se projetaram pela vida. Polonês, saiu
de casa, convocado pelas autoridades militares, aos 14 anos durante a I Grande
Guerra Mundial. Ainda na adolescência se tornou maduro nas trincheiras
européias.Enfrentou a neve, a fome, a morte e a peste no mais amplo sentido que
a guerra impõe.
Celebrada a paz, retornando
ao lar, não havia ninguém. Seus pais haviam morrido e seus irmãos se
dispersados. Salve-se quem puder. Guerra é guerra !
Com a II Grande Guerra já era
marinheiro e entre outras aventuras, o vaso de guerra no qual servia, afundou no
estreito de Bósforo ao se chocar com uma mina e explodir. Foi salvo por navios
aliados à Marinha à qual servia.
Com o término do grande
conflito bélico, sem família e destino, incorporou-se à Marinha Mercante e numa
primeira viagem ao Atlântico Sul, no Rio de Janeiro, foi esquecido sem lenço e
sem documentos. Ficou no porto a ver navios. (!!!)
Conta que na Embaixada
providenciaram roupas, documentos e
dinheiro para ir à São Paulo. E foi o que fez. Em pouco tempo, Henrique Liberek
já dispunha de uma caminhonete e um ponto para fazer carreto situado numa das
avenidas do bairro do Ipiranga.
A narrativa presume-se, se
reporta anteriormente a 1950.
Provavelmente um ou dois anos após ter ficado pelo país.
Sobrevivia fazendo carretos.
Transportava o que pediam, fazia pequenas mudanças. Ia para alguns cantos da
cidade pertos ou distantes. Certa feita foi à Campinas e conheceu Sofia.
Noutra oportunidade, foi
contratado por Tales, um servidor da Justiça, para levar uma geladeira movida à
querosene, para Itanhaém. Deveria descarregar no rancho, a beira do rio, junto
ao Porto Novo na então a bucólica vilazinha cuja energia elétrica era
proveniente de um motor à óleo da própria Prefeitura, bem rudimentar,
barulhento e que vivia quebrado.
Tales explicou bem que teria
que ir pela praia pois não havia estradas. Que era preciso muito cuidado com o
fluxo das marés e infinidades de riachos e ribeirões, inclusive em Mongaguá,
então um aglomerado de pescadores, deveria entrar e passar pela ponte, pois o
rio era fundo e perigoso.
Explicou que ao chegar a São
Vicente, indo pela Via Anchieta, a rodovia então recentemente inaugurada,
deveria passar a Ponte Pensil e seguir até o boqueirão da Praia Grande, àquela
época apenas um aglomerado de casinhas próximas ao forte Itaipu e lá seguir em
direção ao sul até o seu final, uns 40 km distante. A Cidade Ocian era apenas
um projeto de loteamento, como a Vila Caiçara, Pedro Taques, Suarão, Jardim
Imperador e tantas outras paradas da ferrovia.
- Lá é Itanhaém. Chegando à
vila, siga até a ponte da Sorocabana, atravesse e na beira do rio, junto ao Bar
do Zeca, deixe no meu rancho, que é atrás, entre o morro e o barranco na beira
d’água...
- Só perguntar que todo mundo
me conhece.
O marinheiro conheceu
Itanhaém. Encantou-se. A beleza do lugar, o quadro bucólico, pitoresco,
tropical o levou a convencer Sofia sua companheira a se mudarem para lá.
Vendeu o caminhãozinho e com
um piracicabano branco e vermelho de nome Kátia, de madeira e cobertura para
abrigar dez ou doze pessoas, equipado com um Evenrude passou a fazer travessias
entre a praia fluvial existente do lado da Vila e o Porto Novo. Também fazia
excursões pré agendadas rio acima.
Henrique e Sofia passaram a
residir na meia água, com sala e cozinha, próxima a barranca do rio, encravada
no morro, cujo acesso era por picada tortuosa, beirando a orla, desde o Porto
Novo. Eram caseiros do imóvel que dos limites da casa do Tales atingia a Praia
das Saudades. Lugar de horizonte singular.
Lourenço não se recorda bem
como e quando o conheceu. Devia ter uns 8 anos de idade, ou menos, e pode ter
sido por intermédio de seu pai. Mas logo se tornaram amigos. Grandes amigos. O
tempo já vai longe, porém, lembra-se bem que à medida que os anos corriam sua
amizade com Henrique, era mais firme e
sólida.
Dona Sofia, como a chamava, uma negra bem forte, muito atenciosa
também o tratava muito bem. O casal acolhedor e simpático também tinha por
Matias, mais velho que Lourenço e Floriano, mais novo, dois irmãos, filhos de
alemães, da Casa do Peixe, uma vivenda próxima a Praia dos Sonhos dedicada
amizade.
Com o tempo o polonês mandou
construir um piracicabano menor, batizando-o de Fifia, apelido pelo qual Sofia
era chamada por sua sobrinha.
Lourenço passava horas junto
de seu Henrique, como era chamado.
Navegavam juntos. Subia o rio, fazia travessias, acompanhando o velho
marinheiro que sempre tinha uma boa história empolgante para contar.
O experiente amigo permitia,
de quando em vez, que pilotasse o barco. E assim, o ensinou e transmitiu a
malicia de saber onde é o canal, onde tem pedra, onde tem peixe, onde isso ou
aquilo, que serve de orientação em qualquer leito fluvial ou marítimo.
Ele que lhe ensinou a língua
dos mudos. Libras adotada mundialmente.Lembra-se que seu Henrique aprendera
para se comunicar nas trincheiras silenciosas dos ataques surpresas durante a
guerra.
E quando não estavam no
barco, era no pequeno terraço da meia água, que ficavam conversando. Henrique
descascando fumo de corda e contando suas aventuras e Lourenço atento ouvindo
incansavelmente.
Foram longos anos...
Aprendizado e fixação nas
aventuras contadas que faziam Lourenço viajar ao som da fala macia do amigo.
Roberto J. Pugliese
www.pugliesegomes.com.brMembro da Academia Eldoradense de Letras
Membro da Academia Itanhaense de Letras
Titular da cadeira nº 35 – Academia de Letras de São José.
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