Memória 23ª.
Preso fugiu descalso. Sumiu.
O novo delegado de polícia de
Cananéia estava realmente interessado em colocar ordem na cidade. Com todo o
fôlego estava cercando traficantes e grileiros. Sem trégua perseguia a
bandidagem no município que à época tinha menos de 7 mil almas...
Para evitar suspeitas, tinha
por hábito, ao inquirir algum preso, chamar um dos 4 advogados da cidade para
assistir a sessão e assim evitar que pairassem dúvidas a respeito da observação
da lei processual, notadamente no que tange a violação de direitos humanos.
Vale lembrar que 1983 vivíamos ainda os anos
de chumbo.
Numa dessas sessões, numa
tarde ensolarada, Lourenço foi chamado para esse fim. Mesmo sendo perto, fechou
o gabinete, avisou a recepcionista e se dirigiu à Delegacia de Polícia.
Para quem não conhece a
cidade merece descrever o lugar: Ao lado do cemitério municipal, à época era situada no mesmo quarteirão da
sede da prefeitura municipal. Em frente um grande descampado. Um vazio.
Seguindo após o cemitério havia o campo de futebol e depois mato, mangue e
trilhas em direção ao Mar Pequeno de Cubatão.
O prédio da Delegacia de
Policia, padrão no Estado de Sâo Paulo, tinha algumas salas dispostas de frente
para a rua e numa de suas extremidades era a sala do delegado, onde se dava a
sessão. Nos fundos era o abrigo da Polícia Militar e o presídio.
Só havia uma porta na frente
para entrar no prédio.
O delegado na presença de
Lourenço interrogava o preso. Para a solenidade, a autoridade retirava as
algemas, de forma a evitar maior constrangimento. Atitude que refletia bem o
interesse em manter o indiciado de forma digna e sem humilhação.
Os três sentados a mesa
principal. Ao lado, dedilhando uma Reminton semi enferrujada, o escrivão do
plantão. Também atrás de outra mesinha.
Durante os trabalhos algum
policial compareceu à sala e falou qualquer coisa ao delegado que,
desculpando-se, pediu licença ao advogado e disse que já retornava. Seguiram os
três: O escrivão, o policial que dera o recado e o delegado de polícia.
Na sala permaneceu Lourenço e
o preso, que se encontrava de chinelo de dedos. Passado alguns minutos, o preso
levantou-se e deu alguns passos para lá, outros para cá, analisou bem o lugar,
o corredor que seria a saída numa fuga e, deixou transparecer sua idéia em
fugir. Na solidão de ambos, o preso, não escondia a expectativa de fuga.
( Ele irá fugir !!!) Pensava
o advogado. Desconfiava da trama, dado os gestos salientes do miliante.
E sem mais outra cerimônia,
num dado momento, largou a sandálias num canto, como se estivesse cansado de
calçá-las, deu mais uma volta na sala e zarpou a toda velocidade. Um cometa. Azogue. Bólido... um Chico Landi
ou Fittipaldi, já um consagrado corredor àquela época.
Na posição que Lourenço se
encontrava poderia ter passado o pé, de modo a derrubar o fujão e evitar a
fuga. No entanto, ponderou que não era sua obrigação arrumar encrenca dessa
ordem e deixou que o preso fugisse.
Após o delinqüente sair da
sala, gritou: - Fugiu... o preso fugiu, pega...
E a correria foi total.
Geral... todos policiais saíram correndo.
Passado alguns minutos,
sessão encerrada, já sem mais o que fazer na Depol, foi embora. Despediu-se de
Eider Castor, o jovem delegado de polícia, que meio sem graça, o dispensou...
Resolveu ir até o centro da cidade e numa das ruelas históricas, cruzou com a
sua mulher que vinha de carro também e lhe chamou atenção com os faróis. Parou
do lado e ouviu:
- Lourenço, tome
cuidado.! Fugiu um preso perigoso da
delegacia há pouco tempo atrás. A cidade inteira está comentando. Cuidado.
Não fazia cinco minutos que
tudo ocorrera e sua mulher já fora avisada. Na velha Cananéia dos anos LXXX a
voz anônima do diz que diz era bem
mais célere do que a atual internet.
E nesse diz que diz, ao tempo que foi vereador naquela Estância Balneária,
o Prefeito nomeara Pedro, sub prefeito do distrito do Ariri.
Pedrão como era conhecido era
truculento e bruto e fora cabo eleitoral que ajudara eleger Walter Menck, o
prefeito que vencera o pleito. Agora o semi
analfabeto estava a serviço do prefeito e de grileiros. Um homem da
Arena, partido da Ditadura e do prefeito municipal.
No município, assim também
espalhado por todo o Ribeira, eram centenas de grileiros que ameaçavam os
humildes caiçaras daqueles sítios perdidos. Em Cananéia, a área continental
sul, quase isolada, tinha dezenas de grileiros ocupando sítios de humildes
moradores tradicionais.
Lourenço à época vereador
pelo PMDB, partido político que se opunha à ditadura, da tribuna da Câmara,
sempre atacava o prefeito e ao seu braço direito no sul do municipio, o temido
Pedrão. Atacava com acusações de suas ameaças, violências e serviços escusos à
serviço de grileiros, invasores de terras e todos os desserviços prestados à
comunidade.
Todas as sessões Lourenço
pedia a palavra para denunciar os grileiros e as ações do Pedrão, que
amedrontava todo o Ariri. Não perdoava e aproveitava para fazer a ligação entre
o jagunço e o prefeito... Demonstrava a falta de condições morais e
intelectuais do jagunço para ser sub-prefeito do distrito perdido na divisa do
Paraná.
Numa tarde recebeu um recado:
- Pedrão mandou avisar que irá te matar.
Lourenço então jovem
advogado, vereador, com um filho com menos de 4 anos de idade para criar,
pensou que não poderia se acanhar e recuar, mas teria que se previnir e foi à
delegacia, pedir ao seu amigo delegado que chamasse o Pedrão para que
pessoalmente pudessem por as diferenças em dia.
Eider o jovem delegado de
polícia, entendeu e ainda afiançou que tiraria do capanga do prefeito arma de
fogo que portasse e não devolveria... Mandou recado. Chamou o sub-prefeito para
conversar. Não disse o que e com quem, apenas mandou chamar.
O Ariri até hoje é um lugar
isolado. A estrada é um atoleiro que nem sempre permite que automóveis cheguem
à vila do Ariri, distante 60 km. do centro de Cananéia. Barco leva mais de 4
horas, dependendo da maré e do vento... Enfim, havia um único telefone
instalado na sub-prefeitura.
Oportuno lembrar que de 1983
aos tempos de hoje, pouco mudou. Nada de especial e o Ariri e os bairros
adjacentes continuam isolados por terra e por mar.
O delegado marcara uma data
qualquer, que não se recorda, aproveitando a vinda do Pedrão ao centro para
prestar contas ao prefeito, para a conferencia, que seria no prédio da
Delegacia de Polícia.
No entanto essa reunião não
chegou a se realizar. Por coincidência, um telex de Curitiba, informava o
delegado que deveria prender e levar para o Paraná o sub-prefeito, pois fora
condenado pela prática de crime contra a
vida de alguém... Estava foragido, mas as denuncias de Lourenço foram
publicadas na imprensa regional e acabou chegando às autoridades paranaenses e
veio a ordem: Prender o Pedrão.
E foi o que ocorreu.
O fato foi um prato cheio
para que Lourenço continuasse atacando o prefeito e seus asseclas,
desmoralizando-o por estar assessorado por capangas assassinos. Por bandidos
que estavam cumprindo penas. Por analfabetos, semi letrados, bandidos assassinos...
Passados alguns meses ficou
sabendo: Pedrão fora assassinado no presídio onde se encontrava. Brigara e
outro presidiário o matou.
Lourenço se recorda também
que anos depois ao chegar em seu escritório em Itanhaém, onde então residia,
soube por meio da recepcionista que vários presos fugiram da Delegacia na
madrugada.
A Delegacia de Polícia e a
cadeia pública eram no mesmo quarteirão do escritório, que era o mais próximo
do prédio e também do Forum da Justiça.
Mais tarde, ao encontrar seu
parceiro de escritório, Dr. Gomes, hoje Juiz
Federal, pai do atual prefeito da
cidade, soube que logo cedinho, quando chegara ao escritório fora abordado por
um sujeito que pediu para entrar.
O sujeito era um dos
presidiários que fugira e foi ao escritório pedir abrigo. Por outras palavras,
provocou um problemão para o advogado, que de um lado, não poderia dedar a
presença do delinqüente, dada a situação ética firmada entre o profissional e o
preso e, de outro, ter que omitir das autoridades que estava abrigando um
presidiário em fuga.
Enfim, soube que ainda pela
manhã, deu carona ao fujão até Suarão, um bairro distante uns 5 ou 6 km. do
centro da cidade... e se livrou do ABACAXI.
Para encerrar, insta
salientar que Lourenço não trabalha na área criminal, mas tem nas gavetas de
sua memória esses episódios, vividos nas raras oportunidades que atuou nesse
campo do direito...
Roberto J. Pugliese
www.pugliesegomes.com.brMembro da Academia Eldoradense de Letras
Membro da Academia Itanhaense de Letras
Titular da Cadeira nº 35 – Academia São José de Letras
Autor de Terrenos de Marinha e seus Acrescidos, Letras Jurídicas
Autor de Direitos das Coisas, Leud
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