No nosso modo de ver o
Judiciário vem falhando em sua missão constitucional de tornar efetiva a
jurisdição.
Nunca a
imagem do Poder Judiciário esteve tão ruim quanto no momento atual.
Não
bastasse o estigma da morosidade que o persegue de há muito tempo, ainda não
revertido com a introdução do princípio da razoável duração do processo, por
meio da Emenda Constitucional n° 45/04, ultimamente, o Poder Judiciário vem
sendo duramente fustigado pela mídia, após denúncias feitas pela Corregedoria
Nacional de Justiça.
A
judicialização da política e a politização do Judiciário, também, é uma das
críticas que vem aflorando com intensidade cada vez maior.
No nosso
modo de ver o Judiciário vem falhando, e a olhos vistos, em sua missão
constitucional de tornar efetiva a jurisdição.
De
nada adiantam as estatísticas publicadas dando conta da quantidade de decisões
proferidas. É preciso que essas decisões tenham resolvido o mérito das questões
reclamadas, isto é, que tenham entregue a devida prestação jurisdicional, já
que o Poder Judiciário detém o monopólio da jurisdição. Não basta apenar quem
procura a Justiça, cara por sinal, com a extinção do processo sem exame
do mérito.
Há uma
falha estrutural e funcional muito grande.
Tribunais
estaduais estão com estruturas inadequadas e inoperantes. Dizem que há falta de
recursos financeiros para contratação de servidores e aumento do quadro de
magistrados. Só que, ao que saibamos, os recursos financeiros existentes não
estão sendo otimizados.
Há,
também, uma gritante falha funcional. Aumentar o número de juízes, por si só,
não é a solução para o problema que vivemos.
É preciso
implantar no seio da magistratura uma nova cultura: a de fazer justiça,
tornando efetiva a jurisdição privilegiando o direito material, limitando o uso
de normas processuais ao mínimo imprescindível para a consecução do processo. O
processo civil nunca pode ser considerado como um fim em si mesmo. Se o juiz
vislumbrou a existência do direito material não deve ficar buscando regras
processuais para a extinção do processo sem exame do mérito, pois isso não
representa prestação jurisdicional e, por isso mesmo, aquela demanda vai ser
reproduzida em outro processo, concorrendo para o congestionamento do Poder
Judiciário.
A
dualidade da Justiça, uma estadual e outra federal, também concorre para o
encarecimento do Poder Judiciário como um todo e para o retardamento na
prestação jurisdicional, por provocar desnecessários conflitos de competência
conduzindo, às vezes, à prescrição da ação.
Mas, o
pior defeito da magistratura está na falta de vocação dos juízes para essa
atividade de distribuir a justiça.
Temos, na
verdade, um quadro composto por magistrados de alto saber jurídico, muitos
deles com titulações acadêmicas de mestre ou de doutor, mesmo porque parcela
ponderável deles exercem o magistério superior. São profundos
conhecedores do Direito, mas não estão vocacionados para a missão de compor a
lide pelo exame do mérito envolvendo, na maioria dos casos, questões de simples
solução.
Realmente,
na esmagadora maioria dos casos submetidos à apreciação do Judiciário, ou são
questões repetitivas, ou então são questões que não se exige
conhecimentos técnicos aprofundados, mas simples experiência de vida e uma boa
dose de bom-senso. Dizia Cícero, na antiga Roma, que Direito é arte do
bom-senso, o que é uma verdade incontestável.
Nada
justifica uma sentença de inúmeras laudas para uma simples ação de despejo por
falta de pagamento, por exemplo, tecendo extensas considerações de natureza
acadêmica. Às vezes, o excesso de conhecimento técnico do juiz acaba
atrapalhando, e bastante, a rápida solução da lide por fazer abordagens
desnecessárias que servem para municiar a parte vencida com argumentos
dispersivos para recorrer atirando para todos os lados.
O bom
juiz deve ter muita experiência de vida e bastante sensibilidade jurídica.
Detectada a existência do direito material, deverá promover, de forma sucinta,
a efetivação desse direito, sem maiores preocupações com o aspecto processual,
que é mero instrumento para a efetivação da jurisdição. O processo outra coisa
não é senão mero instrumento de que se serve o Estado na sua função
jurisdicional para aplicar a lei ao caso concreto, concedendo a cada um o que é
seu.
Experiência
de vida, bom-senso e sensibilidade jurídica resolvem rapidamente a maior parte
dos conflitos levados à Justiça, ao contrário de conhecimentos técnicos
aprofundados que tendem a transformar o processo judicial em instrumento de
debate de questões acadêmicas, o que é pior, priorizando as normas processuais
que mudam com incrível rapidez, conspirando contra o princípio da segurança
jurídica.
Temos um
Judiciário desvirtuado de suas funções jurisdicionais. Mais parece um órgão
estatal vocacionado para ensinar às partes litigantes a forma de postular a
prestação jurisdicional. O meio é mais importante que o fim. É óbvio que é mais
fácil e cômodo resolver processualmente a questão posta em juízo do que pelo exame
de seu mérito, que envolve exame não apenas do direito, como também a o exame
da comprovação da situação fática alegada.
Tivemos
um caso recentemente de uma ação cautelar inominada para obter a certidão
positiva com efeito de negativa, mediante caução de bens móveis e imóveis,
ajuizada no interregno entre a inscrição do débito na dívida ativa e a
propositura da execução fiscal que, por sinal, até hoje não aconteceu. Essa
omissão, é claro, constitui instrumento de coação indireta para evitar o contraditório
e a ampla defesa na cobrança de tributos indevidos. Simples raciocínio lógico
conduz a isso.
A inicial
comprovou documentalmente que a requerente atua exclusivamente no setor de
execução de obras públicas e que vem perdendo todas as oportunidades de
participar de novos certames licitatórios, bem como que não vem conseguindo
receber as medições já realizadas por ausência de certidão. A propriedade dos
bens oferecidos, bem como os seus valores foram documentalmente comprovados.
Enfim, a inicial foi lastreada em prova preconstituída, como se tratasse de um
mandado de segurança. Era de se esperar o uso do poder cautelar do juiz ínsito
na noção de jurisdição, para evitar o perecimento do direito.
Porém,
para a nossa grande surpresa, o ilustre juiz federal de primeira instância
proferiu despacho laudatório deferindo parcialmente a liminar, porém,
submetendo a expedição da certidão requerida ao prévio pronunciamento da
Fazenda numa demonstração de excessiva preocupação com o erário público, não
bastasse a proteção que a lei já dispensa. É óbvio que a Fazenda não iria
concordar com o pedido de liminar, colocando em xeque a sua estratégia de
coação indireta para cobrar o indevido.
A falta
de conhecimento da realidade e da sensibilidade desse douto magistrado,
provavelmente muito jovem, abrindo mão do poder cautelar de que dispõe, acabou
por condenar a empresa requerente à extinção. Sem novas obras a serem
executadas e sem poder receber pelas obras já executadas, pergunta-se: como
continuar pagando os salários, os tributos e as demais despesas contínuas?
Talvez um leigo pudesse compreender e avaliar melhor essa situação que, de um
lado, está em jogo a sobrevivência da empresa e das pessoas que dela dependem,
e de outro lado, a Fazenda que em nada poderia ser prejudicada com a
determinação de expedir a certidão que tem caráter temporário e que não tem o
condão de alterar o crédito tributário, o qual já deveria estar sendo cobrado
judicialmente.
Esse tipo
de decisão denegatória da justiça equivale ao decreto de falência da empresa
sem observância da lei de regência da matéria.
Esse é
apenas um pequeno exemplo de como a nossa Justiça vem claudicando por força do
velho hábito de se priorizar apenas o recrutamento de juízes cada vez mais
preparados tecnicamente, sem se preocupar com o aspecto vocacional. Sempre
tenho dito que o processo judicial não é local apropriado para a demonstração
de erudição do prolator da sentença, mesmo porque a massificação da justiça
está a exigir decisões simples, rápidas e objetivas para compor a lide com a
maior brevidade possível, a fim de que a morosidade deixe de ser a grande
causa de demandas protelatórias.
Nesse
sentido, as faculdades de Direito em geral, e as Escolas da Magistratura, em
especial devem redirecionar os ensinamentos para que as aulas deixem de
priorizar os conhecimentos técnicos. É preciso atenuar a cultura legalista,
principalmente aquela voltada para o plano processual e enfatizar a busca
da legitimidade de atuação do Judiciário na soberania popular, à medida que todo
o poder emana do povo. O que não pode, nem deve é a excessiva valorização do
aspecto processual como que punindo aquele que bate as portas do Judiciário
para a preservação ou efetivação de seu direito.
( Fonte Jus Navegandi )
Roberto J. Pugliese
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