15 maio 2012

Senhor DOPS !!!

Aos 80 anos, José Paulo Bonchristiano conserva o porte imponente dos tempos em
que era o “doutor Paulo”, delegado do Departamento de Ordem Política e Social de
São Paulo, “o melhor departamento de polícia da América Latina”, não se cansa de
repetir.“O DOPS era um órgão de inteligência policial, fazíamos o levantamento
de todo e qualquer cidadão que tivesse alguma coisa contra o governo, chegamos a
ter fichas de 200 mil pessoas durante a revolução”, diz, referindo-se ao golpe
militar de 1964, que deu origem aos 20 anos de ditadura no Brasil.
Embora esteja aposentado há 27 anos, não há nada de senil em sua atitude ou aparência.
Os olhos astutos de policial ainda dispensam os óculos para perscrutar o rosto
do interlocutor, endurecendo quando o delegado acha que é hora de encerrar o
assunto.
Bonchristiano gosta de dar entrevistas, mas não de responder a
perguntas que lancem luz sobre os crimes cometidos pelo aparelho
policial-militar da ditadura do qual participou entre 1964 e 1983: prisões
ilegais, sequestros, torturas, lesões corporais, estupros e homicídios que,
segundo estimativas da Procuradoria da República, vitimaram cerca de 30 mil
cidadãos. Destes, 376 foram mortos, incluindo mais de 200 que continuam até hoje
desaparecidos.Os arquivos do DOPS se tornaram públicos em 1992, mas muitos
documentos foram retirados pelos policiais quando estavam sob a guarda do então
diretor da Polícia Federal e ex-diretor geral do DOPS, Romeu Tuma.
Entre os remanescentes estão os laudos periciais falsos, produzidos no próprio DOPS, que
transformavam homicídios cometidos pelos agentes do Estado em suicídios,
atropelamentos, fugas. No caso dos desaparecidos, os corpos eram enterrados sob
nomes falsos em valas de indigentes em cemitérios de
periferia.
Bonchristiano é um dos poucos delegados ainda vivos que
participaram desse período, mas ele evita falar sobre os crimes. Prefere soltar
o vozeirão para contar casos do tempo em que os generais e empresários o
tratavam pelo nome.
Roberto Marinho, da Globo, diz, “passava no DOPS para
conversar com a gente quando estava em São Paulo”, e ele podia telefonar a
Otávio Frias, da Folha de S. Paulo “para pedir o que o DOPS precisasse”.
Quando participou da montagem da Polícia Federal em São Paulo, conta, o fundador do
Bradesco mobiliou a sede, em Higienópolis: “Nós do DOPS falamos com o Amador
Aguiar ele mandou por tudo dentro da rua Piauí, até máquina de escrever”.O
“doutor Paulo” sorri enlevado ao lembrar dos momentos passados com o marechal
Costa e Silva (o presidente que assinou o AI-5 em dezembro de 1968, suspendendo
as garantias constitucionais da população). “O Costa e Silva, quando vinha a São
Paulo, dizia: ‘Eu quero o doutor Paulo Bonchristiano’”, e imita a voz do
marechal – ele adora representar os casos que conta.“Eu fazia a escolta dele
e ele me chamava para tomar um suco de laranja ou comer um sanduíche misto na
padaria Miami, na rua Tutóia, vizinha ao quartel do II Exército. Todo mundo
querendo saber onde estava o presidente da República, e eu ali”,
delicia-se.Gaba-se de ter sido enviado para “cursos de treinamento em
Langley” nos Estados Unidos, pelo cônsul geral em São Paulo, Niles Bond, que
admirava a “eficiência” da polícia política paulista.
E o chamava de “Mr. Dops”.Orgulha-se também de outro apelido – “Paulão, Cacete e Bala” – que diz ter saído da boca dos “tiras” quando “caçava bandidos” na RUDI (Rotas Unificadas
da Delegacia de Investigação), no início da carreira, com um “tira valente”
chamado Sérgio Fleury.
Anos depois, os dois se reencontrariam na Rádio Patrulha, de onde saiu a turma do Esquadrão da Morte, levada para o DOPS em 1969, quando Fleury entrou no órgão.“Polícia é polícia, bandido é bandido”, diz Bonchristiano. “Para vocês de fora é diferente, mas para nós, acabar com
marginal é uma coisa positiva. O meu colega Fleury merecia um busto em praça
pública”, afirma, sem corar.O delegado Sérgio Fleury e sua turma de
investigadores se celebrizaram por caçar, torturar e matar presos políticos no
DOPS, enquanto continuavam a exterminar suspeitos de crimes comuns no Esquadrão
da Morte.
Conversas gravadas No decorrer de nove tardes
passadas, entre junho de 2010 e janeiro deste ano, em seu apartamento no
Brooklin, no 13º andar de um prédio de classe média alta, aprendi a escutar com
paciência os “causos” que “doutor Paulo” narra com humor feroz, até extrair
informações relevantes. Repetidas vezes eu as confrontava com livros e
documentos e voltava a inquiri-lo; a proposta era que ele se responsabilizasse
pelo que dizia.De certo modo, meu embate com o “doutor Paulo” antecipava as
dificuldades que serão enfrentadas pela Comissão da Verdade.

Roberto J. Pugliese
www.pugliesegomes.com.br

Fonte: Renap - rede nacional de advogados populares

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