Uma nova legislação para mediar conflitos
As imagens da violenta repressão conduzida pela Polícia Militar de São Paulo contra os moradores da Cracolândia, na Capital, e do bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, causaram indignação e repulsa em todo o Brasil. “Dor e sofrimento” como filosofia de recuperação de usuários de drogas, de um lado, as armas do Estado a serviço da especulação imobiliária, do outro e, no fim das contas, é difícil encontrar explicação para as cenas lastimáveis que assistimos nas últimas semanas.
No espectro político-institucional, porém, esses episódios somaram-se a tantos outros para demarcar o abismo que há entre as concepções de política pública do PT e do PSDB.
Para o governador de São Paulo pela terceira vez, Geraldo Alckmin, e seus correligionários tucanos, parece ser natural recorrer à força policial na região da Cracolândia, em ato claro de higienização social disfarçado de combate ao tráfico.
E vale, também, recorrer à “defesa de Nuremberg” para fugir das críticas pela truculência da PM durante a reintegração de posse do terreno no Pinheirinho: “estávamos cumprindo ordens”, repetiram à exaustão, referindo-se à decisão judicial que desencadeou a ação da polícia.
Em ambos os casos, note-se, fica claro que o governador não terá pudor em voltar a recorrer à criminalização de temas sociais no futuro.
Portanto, acertou em cheio o Partido dos Trabalhadores ao convocar seus parlamentares para debater uma nova legislação que evite as cenas de barbárie como as que o Brasil presenciou: uma lei que transforme a negociação em obrigação do Estado, em especial, em casos que oponham o direito à propriedade e os direitos humanos.
A ideia é reunir mecanismos já previstos nos estatutos da Terra e das Cidades aos que devem ser aprovados neste ano no Estatuto dos Povos Indígenas e na PEC (Proposta de Emenda Constitucional) sobre propriedades que usam trabalho escravo, entre outros projetos que podem ser apresentados pelo partido em relação à função social da propriedade —o que não significa, de forma alguma, ferir esse direito constitucional.
É preciso evoluir para um conjunto de propostas concretas que estabeleça um novo marco legal de mediação no país, com a adoção de procedimentos e mecanismos de estímulo ao diálogo.
Afinal, como é possível pensar na revitalização da Cracolândia sem destinar parte dos prédios desapropriados para centros de recuperação dos usuários de crack que vivem abandonados pelo Estado há mais de 20 anos na região?
Quem considera racional e humano agredir e expulsar violentamente centenas famílias de um terreno que, por conta das dívidas acumuladas pelo proprietário, pode acabar entregue ao poder público, cuja função é justamente resolver o déficit habitacional?
Acima de tudo, que tipo de governante acha natural conduzir ações dessa magnitude sem sequer dialogar com os cidadãos diretamente afetados?
A pesquisa Datafolha que revela apoio de 82% à ação policial na Cracolândia na população paulistana não é suficiente para abarcar tema de tamanha complexidade. Seria preciso uma pesquisa qualitativa para dar uma dimensão melhor de como a ação foi percebida na sociedade, pois os números podem ser enganosos.
À primeira vista, a concordância é com medidas que se voltem a mitigar o problema do crack, tendo os entrevistados entendido a pergunta como “você é a favor de uma ação na cracolândia?”.
Isso explicaria o fato de que os mesmos 82% disseram que a operação no local não vai resolver. Ou seja, há apoio para a iniciativa de enfrentar o problema do crack, mas o caminho escolhido não é considerado eficaz.
Ademais, a soma dos 28% que concordam em parte com os 14% dos que discordam da ação indica que 42% da população têm alguma ressalva à operação.
O fato é que devemos enfrentar oposição ferrenha dos senhores que lucram muito, há muito tempo, com a manutenção dessa política de valores inversos.
O horror imposto às famílias do Pinheirinho e aos usuários de drogas da Cracolândia configura versões urbanas de Eldorado dos Carajás (PA), simboliza o avanço sobre as cidades da violência institucionalizada que já interrompia a democratização pacífica da terra no interior do Brasil em nome da avareza de monopólios e latifundiários.
O esforço para nos livrar de uma vez por todas de espetáculos deprimentes como os que ocorreram em São Paulo terá de ser amplo e decidido. No Congresso Nacional, é preciso sensibilizar os demais partidos para a urgência da questão, e, da parte do Judiciário, atrair os Conselhos do Ministério Público e Nacional de Justiça para, a partir de atos autorreguladores, garantir que os magistrados apontem em suas sentenças de reintegração de posse caminhos alternativos ao uso de força policial.
De uma vez por todas, precisamos incutir na concepção de Estado a compreensão de que, sem diálogo e negociação, não avançaremos na pauta dos conflitos sociais. Esse tema é historicamente caro ao PT e não podemos deixar de apresentar à sociedade uma plataforma para debater no Congresso uma legislação de mediação de conflitos. Sem dúvida, a sociedade sairá ganhando.
José Dirceu, 65, é advogado, ex-ministro da Casa Civil e membro do Diretório Nacional do PT
As imagens da violenta repressão conduzida pela Polícia Militar de São Paulo contra os moradores da Cracolândia, na Capital, e do bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, causaram indignação e repulsa em todo o Brasil. “Dor e sofrimento” como filosofia de recuperação de usuários de drogas, de um lado, as armas do Estado a serviço da especulação imobiliária, do outro e, no fim das contas, é difícil encontrar explicação para as cenas lastimáveis que assistimos nas últimas semanas.
No espectro político-institucional, porém, esses episódios somaram-se a tantos outros para demarcar o abismo que há entre as concepções de política pública do PT e do PSDB.
Para o governador de São Paulo pela terceira vez, Geraldo Alckmin, e seus correligionários tucanos, parece ser natural recorrer à força policial na região da Cracolândia, em ato claro de higienização social disfarçado de combate ao tráfico.
E vale, também, recorrer à “defesa de Nuremberg” para fugir das críticas pela truculência da PM durante a reintegração de posse do terreno no Pinheirinho: “estávamos cumprindo ordens”, repetiram à exaustão, referindo-se à decisão judicial que desencadeou a ação da polícia.
Em ambos os casos, note-se, fica claro que o governador não terá pudor em voltar a recorrer à criminalização de temas sociais no futuro.
Portanto, acertou em cheio o Partido dos Trabalhadores ao convocar seus parlamentares para debater uma nova legislação que evite as cenas de barbárie como as que o Brasil presenciou: uma lei que transforme a negociação em obrigação do Estado, em especial, em casos que oponham o direito à propriedade e os direitos humanos.
A ideia é reunir mecanismos já previstos nos estatutos da Terra e das Cidades aos que devem ser aprovados neste ano no Estatuto dos Povos Indígenas e na PEC (Proposta de Emenda Constitucional) sobre propriedades que usam trabalho escravo, entre outros projetos que podem ser apresentados pelo partido em relação à função social da propriedade —o que não significa, de forma alguma, ferir esse direito constitucional.
É preciso evoluir para um conjunto de propostas concretas que estabeleça um novo marco legal de mediação no país, com a adoção de procedimentos e mecanismos de estímulo ao diálogo.
Afinal, como é possível pensar na revitalização da Cracolândia sem destinar parte dos prédios desapropriados para centros de recuperação dos usuários de crack que vivem abandonados pelo Estado há mais de 20 anos na região?
Quem considera racional e humano agredir e expulsar violentamente centenas famílias de um terreno que, por conta das dívidas acumuladas pelo proprietário, pode acabar entregue ao poder público, cuja função é justamente resolver o déficit habitacional?
Acima de tudo, que tipo de governante acha natural conduzir ações dessa magnitude sem sequer dialogar com os cidadãos diretamente afetados?
A pesquisa Datafolha que revela apoio de 82% à ação policial na Cracolândia na população paulistana não é suficiente para abarcar tema de tamanha complexidade. Seria preciso uma pesquisa qualitativa para dar uma dimensão melhor de como a ação foi percebida na sociedade, pois os números podem ser enganosos.
À primeira vista, a concordância é com medidas que se voltem a mitigar o problema do crack, tendo os entrevistados entendido a pergunta como “você é a favor de uma ação na cracolândia?”.
Isso explicaria o fato de que os mesmos 82% disseram que a operação no local não vai resolver. Ou seja, há apoio para a iniciativa de enfrentar o problema do crack, mas o caminho escolhido não é considerado eficaz.
Ademais, a soma dos 28% que concordam em parte com os 14% dos que discordam da ação indica que 42% da população têm alguma ressalva à operação.
O fato é que devemos enfrentar oposição ferrenha dos senhores que lucram muito, há muito tempo, com a manutenção dessa política de valores inversos.
O horror imposto às famílias do Pinheirinho e aos usuários de drogas da Cracolândia configura versões urbanas de Eldorado dos Carajás (PA), simboliza o avanço sobre as cidades da violência institucionalizada que já interrompia a democratização pacífica da terra no interior do Brasil em nome da avareza de monopólios e latifundiários.
O esforço para nos livrar de uma vez por todas de espetáculos deprimentes como os que ocorreram em São Paulo terá de ser amplo e decidido. No Congresso Nacional, é preciso sensibilizar os demais partidos para a urgência da questão, e, da parte do Judiciário, atrair os Conselhos do Ministério Público e Nacional de Justiça para, a partir de atos autorreguladores, garantir que os magistrados apontem em suas sentenças de reintegração de posse caminhos alternativos ao uso de força policial.
De uma vez por todas, precisamos incutir na concepção de Estado a compreensão de que, sem diálogo e negociação, não avançaremos na pauta dos conflitos sociais. Esse tema é historicamente caro ao PT e não podemos deixar de apresentar à sociedade uma plataforma para debater no Congresso uma legislação de mediação de conflitos. Sem dúvida, a sociedade sairá ganhando.
José Dirceu, 65, é advogado, ex-ministro da Casa Civil e membro do Diretório Nacional do PT
( colhido de Rede Nacional de Advogados Populares, Renap )
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